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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Paris

João-Afonso Machado, 12.10.21

TORRE.jpgO Arco do Triunfo da minha chegada, a inevitável Torre Eiffel... Faltavam 392 dias para o ano 2000. Cidade espantosa, a capital francesa!

A máquina fotográfica, muito rudimentar, trouxe pouco de volta. A visita do Louvre foi uma obrigação cumprida com vénia a Gioconda. E pareceria mal não dar a voltinha pelos boulevards au tour de les Champs Élysées.

Mas Paris era muito mais. Paris vivia na rua, circulava de bicicleta e saca a tiracolo, carregada de baguettes. À noite passeava-se até ao Quartier Latin, atravessava dúzias de pontes, para cá e para lá, fazia quilómetros de bairros já meio adormecidos. E de dia, nas margens do Sena, as velharias, os Dalis de boina, hirto bigode e ar inspirado, a mão estendida aos turistas. Depois Montmartre, os seus moínhos, a Place Charles Dullin, onde pernoitei no apartamento de um amigo.

Malhereusement, un stop! frente ao Moulin Rouge, não era preço para o meu bolso então. Assim Paris prosseguiu em restaurantes e bons vinhos e melhores queijos. Como aquela inesquecivel jantarada num marroquino, o dromedário vivo e acordado, preguiçosamente deitado ao centro, as mesas em redor e tantos, tantos, a cumprimentá-lo, no entusiasmo das novidades magrebinas; farta pratalhada de cuscuz e alguns milímetros de miraculoso chá, a digestão feita à velocidade da luz.

Enfim, a Mireille, a artista no seu posto, - que será feito da Mireille, fumadora, a pele já tão vincada?...  o meu retrato a carvão - Comment t'apelles-tu? - João-Afonso... - Juan Alphonso, escreveu ela, antes de assinar essa obra que ainda guardo.

É, faltavam 392 dias para o ano 2000. Mais de duas décadas nos galgaram entretanto. E tudo foi apenas uma migalha de Paris. Há que voltar para apanhar outras ainda...

E Mireille? Ainda pintará nos parques de Montmartre? Jazerá no Père Lachaise? Juro que, num sítio ou noutro, a procurarei quando lá regressar.

 

Sernancelhe

João-Afonso Machado, 17.07.21

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Muitas vezes foi assim durante esses anos vividos a alta velocidade. Chegadas tardias, o jantar pródigo e demorado e a noite dormida mais ou menos. No correr de localidades belíssimas que ficavam no limbo, pendendo muito para uma final sentença insatisfatória. Como é o caso de Sernancelhe, décadas atrás, tantas que já não recordo a caçada.

O assunto eram as perdizes. O bródio, ao ritmo dos restantes... E Sernancelhe?

Sernancelhe, vila e concelho do distrito de Viseu, foi então a miragem nocturna de uma voltinha digestiva. O bastante para respirar o granito e aproveitar uma ou outra fotografia. Ainda lembro a praça central, sem lápis para umas notas que ajudassem o futuro; e o pelourinho, casario com vaga aparência de municipalidade e pedra, pedra, pedra - granito, granito, granito - por todas as entaladas vias do nosso respiro, noite cerrada.

Há de ser muito mais, Sernancelhe. A Beira Alta carrega-se de terras neste jeito, à espera de uma visita com olhos de ver. E quem espera sempre alcança...

 

"Trafaria"

João-Afonso Machado, 20.06.21

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Água sussurrante de cor sem raça,

brilhante

e a sobrevoar de asa caída a fome

durante mil gaivotas de ameaça,

um beijo um só desejo

 

(vida, vida, 

come, come),

 

rouba-me o ar e o ensejo

de me abismar em maresia

 

entre botes, casinhas, essa pose fria andante,

cargueiros de aço devasso,

o areal uma fantasia,

 

tudo nada era real

nesse dia, hoje, doravante.

 

 

Northumberland

João-Afonso Machado, 25.04.21

Lembro, Alzira, - e sempre lhes ficámos gratíssimos - o empenho e o carinho com que fomos recebidos pelos nossos Amigos em Ashington. E lembro o nosso passeio a New Biggin, o tempo ainda disponível para conhecer Newcastle, a corrente ferrugenta do Tyne. Mas Northumberland é maior do que os dias e as semanas. Faltou-nos o National Park, as ilhas escondidas nas brumas e muito, muito mais desse topo inglês já a esbarrar na Escócia.

A tua doença era do nosso conhecimento recente. Urgia descansasses e, para o teu descanso, os nossos Amigos foram incansáveis. Mais por não, pelas belas imagens que nos proporcionaram.

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Eu trouxe comigo, sobretudo, os vagares do Mar do Norte. E uma pesca sem engarrafamentos de trânsito... Barcos trotando as águas, pacholas, pescadores vindo dos areais, pendurados nas suas resignadas canas e nos baldes vazios, completamente esquecidos de que era Julho... Um horizonte sem fim, o aviso acima  das nossas cabeças para os mamantes da cerveja, bem-humorado, tipicamente britânico.

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E a inóspita igreja sobre as águas, o cemitério ao lado, tantas lápides, tantos nomes, tantas histórias por contar. Faltou-me uma égua calma, talvez mesmo lusitana, de bem com o terreno, uma espada à cinta e Northumberland devassada de ponta a ponta. Das altitudes ao litoral, embarcando em remares cantados até às ilhas.

Mas creio a conheces perfeitamente, Alzira, aí onde estás por todos nós. Faz agora mesmo quatro anos...

 

A Coruna

João-Afonso Machado, 08.03.21

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Foi num Verão, há uns anos. Rapidamente combinado, de Pontevedra um salto até à Corunha. Uma visita relâmpago. O bastante para gozar o mar, a praia, todo o envolvimento da baía.

Não chegou. A magna cidade da ponta mais a Norte da Península é imensa, bate-se, de igual para igual, com as nossas maiores portuguesas. Nada menos do que a rainha da Galiza, tão irmã do Minho.

Ficaram cegas as ruas menores, a vida dos de lá, toda a minúncia que vai além da exaltação balnear. Ficou a pesca local, o quotidiano, a gente autóctone, um pulsar que não é o do turismo.

E ficou um azul inesquecível. Decerto pintado em águas geladas do mar. Ainda assim azulíssimo, a convidar, muito prestável, para outro encontro mais distante dos cais, da maresia, da agitação. Em caminhadas sãs ao longo dos arruamentos, "galegando", galgando, conhecendo. 

 

Angra do Heroísmo

João-Afonso Machado, 21.02.21

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O dia é um lugar muito pequeno. Dá para pouco. E, nesse dia, o mundo até estava classificado nos respeitáveis e honrosos catarpázios do Património Mundial. Ninguém contradiga, Angra do Heroísmo é uma cidade linda, lindíssima.

Muito orgulhosa da sua História: dela partiu a armada de D. Pedro IV, a disputar Portugal com o seu Irmão, o Senhor D. Miguel. Foram heróis, esses militares? - não sei...; foram corajosos? - sem dúvida, foram. Provavelmente, foram heróis porque foram corajosos. E Portugal - Oh Senhor!, quem saberá dele?

Mas a Sé, a Igreja da Misericórdia, os jardins, praças e ruas... Tudo é para muito mais de um dia. Acrescendo o mar, o Ilhéu das Cabras, os anais da cidade. A fortaleza! Como no mais, uma memória incompleta amochilada nas minhas costas. Um bocado de vida ainda por compreender.

O tempo urge - é tempo de lá voltar. Com o suficiente vagar de quem escreve um poema sem caneta, apenas do coração. (Mesmo em silêncio, votando-o a D. Miguel...) Mas o que interessa, entretanto, o Passado? - o óbvio nada. Angra é Angra, um sul de cores portuguesas pintado em pleno Atlântico...

E o Ilheu das Cabras, as aves, o reino dos seus ninhos..., elas sim, alando-se, o sinal vital da liberdade.

 

Trancoso

João-Afonso Machado, 15.02.21

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Uma vila que ficou em nuvens, após rápida estadia: foi o tempo de chegar e o confronto com a velha muralha e a devida vénia a El-Rei D. Dinis, ainda recebendo a Sua noiva, a nossa Rainha Santa. No entrar da porta principal da praça, muitos homens de armas, lanceiros, as flâmulas todas da Nacionalidade. - Machado? Por quem sois! - E os amigos, guias nesse périplo, num instante nos confrontaram com a estalagem.

Eram os tempos dos nossos 40 anos. Dava para tudo: jantaradas folgazãs, passeatas, dormir a desoras. Sob uma escuridão que exigia espera fotográfica, num grupo sempre acelererado. E daí as poucas imagens trazidas. Aliás, tão poucas quanto as perdizes levantadas, em terras fáceis de planalto...

Mas ficou o retrato da Estrela de David gravada na pedraria granítica de uma esquina de Trancoso. Já muito noite, no virar de uma viela. Eram os mistérios silenciosos da vila, uma gente à parte dentro das suas casas, no mais são amabilíssimo acolhimento do quotidiano. Relata-nos isso a vida irmanada da actualidade. Somente... aquela estrela, decerto multissecular, era um aponte às catacumbas, a indicação de um refúgio. Pobres judeus da raia! E a história veio renanscendo entre ruelas e praças...

... A história do «abafador» de Riba Dal, nos Novos Contos da Montanha, de Torga. O homem eleito por Jeová para abreviar a morte dos agonizantes, antes que se ouvissem as campaínhas do Sagrado Viático do Catolicismo. Assim o moribundo morria matado, mas na Fé dele...

O «abafador», quando chamado. alto, magro, de parcos dizeres, sabia ao que ia. Não tugia nem mugia, conta Torga. Diria as suas rezas primeiro... Mas, de imediato, se lançava com o joelho ao peito do quase defunto, e as mãos ao seu pescoço. Em chegando o sacerdote de Cristo, tarde era, a morte antecipara-se...

Foi assim? Nunca saberemos. Apenas registo sinais inatingíveis de uma doutrina diferente. Sendo que, historicamente, enalteço a presença e a preserverança do judaísmo, meu Deus!, que és de todos os teus.

 

Arraiolos

João-Afonso Machado, 05.02.21

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Portas manuelinas de uma noite fugaz e outro dia talvez! Calcários fáceis e sempre distantes... Terra de silêncio ao fim de mais uma cheia de calor. Assim passei, quase não demorei, por este menino do mundo que desconheço. Entrevi amigas, as andorinhas do céu inteiro, e com elas conversei o nada que ia do luso-fusco à escuridão. Tanto faltou para Arraiolos sóbria, bebericando uma cerveja na esplanada do café e uma pergunta sacramental: quem és tu, Arraiolos?

Fica a carne dura da incompletude. Mais a fixação numa outra maré qualquer. E o pelourinho... O castelo no alto,... e tanto, tanto mais que faz medo, não fora a imensa vontade do querer, umas centenas de quilómetros entretanto, e uma tarde chã a traduzir em companhêros de mesa e de alma artistas do arado e dos tapetes voando sobre a cabeça das senhoras de bom gosto.