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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

À boleia

João-Afonso Machado, 05.02.22

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Foi numa dessas estradas secundárias minhotas, pelo meio da tarde. Eu bem poderia contar os quilómetros nas pernas e assim ir andando... Mas, volta mais volta, um automóvel de passagem e o dedo esticado a reclamar ajuda...

Eis então, depois da curva, um ruído diferente, não seria tractor, menos um motor moderno. Estaquei, curioso, e, de caras comigo, uma aparição dos Anos 30 - quase uma centúria! - do pretérito século. Elegantíssimo, a brilhar dos cromados, um Ford V8. Ao meu sinal parando, marcha-à-ré, resfolegante da subida, a acenar sim ao meu pedido de boleia.

Escusado será dizer, agradeci e embarquei entusiasmado. Em tempo de ouvir o quente trautear do seu escape, algo a lembrar-me a primeira viatura do cangalheiro da terra, defuntas levas e despedidas chorosas, o motor expedindo trons compassados com todas as flores que se lhe acrescentavam. Sim, recordo bem essa fumarada de adeus lacrimoso, havia bombeiros, confrarias, e um ar quente que nos gelava o coração no derradeiro instante da mortalha oculta. O percurso seguinte era a pé, subindo, subindo, ante o tossicar do motor que parava e esperava por nós, pedestres.

Mais de branco pintado, o carro do tio, o tablier resumido e o Ford V8 galgando estradas rumo à praia, destinos de felicidade... Em toda a viagem a memória incontrolável calou vozes, deu-se a todo o conforto, pacificou o passado e forneceu o crédito bastante para chegar a horas a casa. Com três velocidades para a frente, manípulo junto ao volante, a amizade do condutor e uma conversa parecendo um lavatório de coisas feias.

A grelha frontal, os faróis, todo o composto...  - A este velhote só faltou ir para o campo com a charrua atrelada... - Nada retorqui, importante era que chegasse agora ao meu destino... E para quê as comodidades de hoje? Mais hora, menos hora, o ponto final da viagem é o mesmo, e só não ficará o recorte da epopeia, porque as epopeias já lá vão, demonstravelmente por estas máquinas que persistem em (desprovidas de malabarismos técnicos), deambular, quilometrar e dar-nos o gozo enorme que as modernas não dão.

 

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