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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

À boleia

João-Afonso Machado, 18.07.21

COROLA 1200.JPG

Era domingo, era Agosto, e o sol escaldava logo pela manhã. A decisão não demorou: praia, Vila do Conde, alguma alma caridosa se prestaria à indispensável boleia.

Assim os meus quinze anitos se postaram na berma da EN209, o braço esticado, o polegar também. Mas os carros, já então em fila interminável, carregavam famílias inteiras e autênticos banquetes espalhados pelos espaços sobrantes. Um tormento de espera, suportado sobre o alcatrão fumegante da estrada.

Até que o jovem casal passou, no seu Toyota Corolla 1200. E simpaticamente parou e a senhora abriu a porta e saiu para eu entrar. Falavam pelos cotovelos, os dois...

Assim fiquei sabendo, tinham sido emigrantes e regressado já com posses para construirem a sua casita. Ele empregara-se na Minhotex, adquirira um pastor alemão, sempre vigilante nos muros do seu império, e, mais recentemente, este moderníssimo Toyota. Iam domingar para a Póvoa.

- Janota, janota... - disse aos meus botões. E mirei o tablier, o pequeno volante e a resoluta alavanca das velocidades; o terço pendurado no espelho retrovisor, o rádio que tocava (salvo erro) o Paulo de Carvalho, o conforto dos estofos; e o cheirinho que emanava da mala... Estabeleci todas as comparações possíveis - o trânsito pasmava exasperantemente - com o velho carocha do Pai que, por acaso, se dedicava mais aos serra da estrela... Enquanto tal, a senhora, amabilíssima, vendo-me magro, escanzelado, com uma expressão de quem atravessara a pé o Sahara, logo inquiriu se eu comia algo.

Senti lá atrás o aroma dos bolinhos de bacalhau, do franguinho assado, ouvi o vinho chocalhar no garrafão. Uma tentação... Mas seria abuso, e interessava-me chegar rapidamente a Vila do Conde, certo ser o meu amigo, o falecido Comendador, me dar albergue. Assim, penhoradamente grato, recusei o petisco.

E em Portas Fronhas, em vez de virarem a norte, os meus benfeitores tomaram o sentido contrário: iriam mesmo deixar-me na vila e arejar o Toyota pela marginal. Uns anjos da guarda!

(Corridos estes anos todos, reencontrei-os e reconheci-os. Lembravam-se dessa boleia, sim senhor. Estão agora reformados e avós. E conservam o seu primeiro automóvel, no qual continuam a passear dominicalmente...)

 

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