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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

A caminho da morte

João-Afonso Machado, 20.03.21

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Por razões que não vêm ao caso, sou especialmente devoto de Joaquim Pedro de Oliveira Martins - o emérito Oliveira Martins, neto de um simples soldado miguelista e autor, entre outras obras geniais, do indispensável Portugal Contemporâneo em dois volumes: o primeiro de mui agradável leitura histórica, o segundo mais de reflexão, pelo acervo que contem de dados sociológicos, demográficos, economicistas, financeiros.

E nesse extraordinário monumento (vol. I), a narrativa da expiação dos condenados de Maio de 1828 - liberais portuenses - surge carregada de dramatismo e humanidade, como que vemos os desgraçados descendo da Cadeia da Relação à Praça Nova, onde estavam montadas as forcas. Fica para cada um a leitura do suplício. Pelas ruas iam eles, afantasmados, aterrorizados, sob a arruaça da multidão. Agonizantes, já, indiferentes ao bichanar dos frades que lhes oravam às orelhas, às irmandades, à Misericórida, cujos irmãos carregavam os caixões.

Um outro recluso, não condenado à morte mas obrigado a assistir às execuções, poeta do desespero, ante aquela missa de maldades e lúgubres salmos, lançou as suas estrofes:

Quando sobre a negra escada/Vires meu corpo tremer,/Dá desconto à Natureza,/Adeus, Márcia, eu vou morrer.

O povo cantava o Miserere. Os monásticos dos Loios, às varandas, ensopavam pedaços de pão-de-ló em vinho do Porto e atiravam-nos à canalha esfusiante na rua. Na Praça (hoje Avenida dos Aliados, onde está agora a estátua equestre de D. Pedro IV), a tropa bem armada, o clero, a magistratura da alçada. E o compadecido, padecente, poeta, sempre versificando:

Este corpo que abraçaste,/Que já foi o teu prazer,/Vai tornar-se em pó, em terra,/Adeus Márcia, eu vou morrer.

A Guerra Civil ainda nem começara. Findaria em 1834, deixando Portugal na borda da ruína. O tema presta-se a estudos amplíssimos. (Cosida a uma das minhas mochilas, a heráldica de Évoramonte, símbolo da "paz"...) Mas a visão de Oliveira Martins carrega-se de vida, movimento e sentimentos. Sem a conhecermos, nunca se poderá analisar ponderadamente esse período da nossa História.

 

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