A catequista que mudou de deus
Era a beata-mor da paróquia. Mesmo o Sr. Abade a repreendia - Olha lá rapariga, que o que é demais é moléstia... - Mas os cursos, o seu saber teológico, os livros de Moral que papara como hóstias, tudo a convencia ser a mais próxima do Céu. É claro, tanta soberba e tanta cultura faziam fugir o rapazio local, e a sua vida ia e vinha de casa para a igreja.
Uma saturação para o Sr. Abade! E intentando vê-la mais arredia da sacristia, intercedeu junto do Sr. Vigário-Geral por uma colunazita no jornal da diocese...
Errare humanum est! Perceber-se-à porquê.
Como qualquer catequista, tinha o seu gato. E toneladas de veneno dos ratos para deitar buracos no soalho abaixo. Assim o bichano se entretinha apenas com o mimo da dona, agora muito literata, muito concentrada. Sem tempo... senão para abandonar o gato numa bouça distante. - Que a bicharada se quer liberta!... - assim se aliviou da consciência.
Mas esta era persistente e não despegava os seus livros de Teologia, Filosofia e o folhetozito de Ética que um dia decorara. Foi nesse aperto que quase esqueceu os Evangelhos, substituindo-os pela, de sua autoria, Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Indo logo às causas maiores (quais circos!, qual carapuça!), as touradas e a caça.
Deste modo atroz o Sr. Abade viveu a sua cruz, os pregos todos os dias a sangrarem-lhe as mãos e o espírito. Mais a mais, pelava-se por qualquer manhã aos coelhos, com outro paroquiano e a sua matilha. E o raio da beata a azucrinar-lhe os ouvidos com o Livro do Génesis e a harmonia do Paraíso... Imaginou-a apenas com uma parreira sobre as partes pudibundas e sentiu que pecava em pensamento. Não podia ser, valer-se-ia do lamento de um colega sem fieis que o auxiliassem nas actividades da sua igreja - e para lá a encaminhou em missão especial, que aquilo era uma perdição, uma multidão de ímpios em torno das chegas de bois e de apostas ganhas, ou não, à custa das dores destes.
Ela de imediato foi. Levou a máquina de escrever, pouco mais, mas arranjou de morar nesse recanto troglodita. E, sobrevindo a romaria anual, rumou ao festejo como um bote carregado de fuzileiros. Chegando, rapou do microfone da organização e arengou, arengou. Chamou nomes ao povo, bravejou pelos bois, proclamou uma sociedade vegetariana em que todos - o povo e os bois - pastariam juntos, como irmãos, a quatro patas no chão.
Graças à infinita bondade divina, o sargento da GNR da terreola era homem de se impor e não admitiu lhe dessem nem uma única paulada. Diz quem viu, na sua fuga conduzida pelo militar, apenas sofreu uma cornada de um boi. Coisas do instinto animal - se ela não queria um macho, ele, boi, não dispensava as fémeas, pelas quais lutava...
Da catequista ninguém mais soube - nem a Biblia, nem os bois, nem o seu pobre gato, estrancinhado por uma raposa ladina. Que outras paragens terá escolhido para o seu apostolado?