A noite agoirenta
Há dois anos, por esta altura, acordaríamos ainda ao som e da marcha dos bombeiros. Em noite de Sexta-feira Santa, a cidade pusera todo o seu garbo na procissão, e os nossos soldados da paz envergavam a sua imponência e as sua fardas de gala.
Imprescindíveis. Mesmo porque até as mais empedernidas almas se compadeciam com o calvário de Cristo, maltratado, submisso, arrastando os pés no pavimento.
Os romanos, umas feras nas nossas ruas, insaciáveis no seu vício de invasões. A multidão assistente recuava, cautelosa, à sua passagem, e fixava-se em Cristo de mãos atadas e corda ao pescoço, alva túnica dos mártires. Quando não no arroxeado do luto, já mal aguentando o peso do madeiro às costas. É a História, nada poderíamos alterar, assim quis o destino e com ele se conformavam as autoridades civis e eclesiásticas no préstito.
Também entre os escuteiros a ninguém ocorria a boa acção... As confrarias, uma mão cheia de elas, resignadas, o pendão a arrastar-se no empedrado, eram um salmo em silêncio aos padecimentos do Filho do Homem. A multidão tudo espreitava, no maior assombro de uma primeira vez... E compensava-se no desfile dos anjinhos, meio desorientados nesse céu de curiosos - num céu sem estrelas, mas ainda ao som lúgrube soprado pelos cornetins da banda dos bombeiros, a batida grave, compassada dos tais tambores, como se toda a procissão rumasse para as galés.
A cidade estendeu-se ao longo do percurso inteiro. E os bombeiros, mais do que nunca, uma tábua de salvação. Marchando, com toda a marcialidade, a machadinha ao ombro e os capacetes brilhando de amarelados, polidos, a condizer com os botões das fardas, prontos a fazerem frente aos romanos inimigos de Cristo.
Um sonho meu, nunca realizado - ser bombeiro. Entre os seus estandartes e hierárquias. Na minha idade, decerto condecorado, heroi de muitos feitos, muita veterania, em postura vertical, quiçá comandante... (- Ó Machado, não esqueças a machadinha!) Sob o pálio, mais adiante, Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Arcebispo. Sem dar por esse combate em que os nossos bombeiros cilindravam o anti-Cristo e davam vida às confrarias da morte.
Desecarapuçando-as como se descascassem sinais de esperança. Ouviam-se outra vez os cornetins da banda. Prosseguia a marcha nocturna. A vida era, e é, em frente... Assim antes do Covid, assim sempre!