A preto e branco
O calor era excessivo mas tinha assuntos a tratar na Baixa. Assim saiu de casa com uma ligeira, inexplicável, indisposição. A duzentos metros da paragem do eléctrico, que anteviu já próximo, acelerou o passo. Era o 6, se o perdesse suaria mais uma hora de espera. Não, não o deixaria ir...
E já atingido o alvo, onde duas utentes também aguardavam, não soube decifrar, não quis saber dos suores frios que o tomavam, sequer aliviou o corpanzil, o fato a estrafegá-lo, o chapéu como um chafariz a pingar... E o 6 chegou e estacou. Na última paragem de Monte dos Burgos antes do cruzamento do Carvalhido.
Entraram as senhoras primeiro. Ao deitar as mãos aos apoios dos degraus, sentiu não soube o quê, o corpo não obedecia, a vista turvava-se e a respiração sumia. Caiu redondo no pavimento.
Alarme geral! O cavalheiro arroxeava, nada dizia, entrara em inconsciência. No auge da ansiedade, abanaram-no, falaram-lhe, pediam por si - se estava mal disposto... Pois sim! Ora avermelhado, ora pálido como cêra, cada vez mais pálido, respondia apenas com borbulhares salivosos, prostrado no chão.
À distância, o sinaleiro no cruzamento percepcionou o drama. Mas não podia abandonar o seu posto. Muito menos se queria a elaborar um relatório na esquadra da PSP, tremenda peripécia fora da sua rotina...
Um moço mais expedicto saiu do eléctrico e largou a correr até um tasco próximo. Pediu o telefone, ligou aos Sapadores Bombeiros - É urgente, muito urgente, o homem está ruim! Deu-lhe qualquer coisa!
E a ambulância demorou alguns vinte minutos. Caladamente parou cheia de sapiência e caladamente enfiou o corpo inerte na lona entre duas talas metálicas, partindo então para o Hospital de Santo António.
Ao outro dia, um comensal do Guarany, lidando com as enormes páginas de letra miúdinha do Comércio do Porto, na sua predilecta secção Os Casos do Dia, lia mais uma "Doença súbita e mortal" ocorrida no Carvalhido - fora o fim inesperado, instantâneo, de um "indivíduo de sexo masculino" aparentando 60 anos. "Prontamente socorrido, revelaram-se inúteis todos os meios para o salvar" - mas quem?
Um ser humano como nós, indubitavelmente. E, tantos anos depois, alguém o lembrará? Os seus netos e bisnetos? Que é feito da sua eternidade cá em baixo?