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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

A preto e branco

João-Afonso Machado, 30.12.22

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A partida era manhã cedo, a viagem muito longe até ao Ano Novo em Lisboa. Ainda a geada embranquecia o caminho. Havia sentimentos confusos entre o entusiasmo e a realidade. Entre a vontade e a consciência dos pequenotes lembrados do que já tinha sido.

O carocha partia carregado. Pai e Mãe, cinco, depois seis filhos, a criada, um estradal imenso pela frente. Mais de 300 km com dois insignificantes troços de auto-estrada rumo a Lisboa. A Mãe, à frente, levava o bebé ao colo. De cintos de segurança jamais alguém ouvira falar. O Pai ia apressadamente enchendo o cinzeiro do carro com as piriscas de cigarros fumados uns após os outros. Tudo para passar o ano com o Avô.

O Porto, S. João da Madeira, Oliveira de Azemeis, Águeda, Coimbra, Leiria... até alcançar Alenquer e o seu presépio estampado num morro. - Meninos! - dizia a Mãe - Já falta pouco!

Faltava Vila Franca de Xira, a auto-estrada e Lisboa, o ómega no mapa destes Reis Magos.

Pelo infernal caminho os enjoos das manas. Porque só elas enjoavam, afora a criada que era um desastre - Minha Senhora, sinto-me mal... - mas o carocha não dava tempo com somente duas portas. Os vómitos sucediam-se, um e outro, e tantos outros, dentro do carro. Era sabido, os papeis de jornal à volta do estômago não produziam efeito, só depois o Vomidrine amansou o transe.

(Leiria valia como ponto de paragem, vencida a ponte sobre o Liz. Lugar de comer e lavar o carro por dentro, aliviar os maus cheiros.)

O calvário prosseguiria até à auto-estrada de Vila Franca de Xira, rejubilante meia hora, o Pai estenuado acelerando, Lisboa à vista. Todos amassados pela viagem, o Avô quase uma quimera no final - era noite cerrada - desse tormentoso dia.

Mas o Tempo não dá hipóteses. O Tempo levou o Pai e a Mãe, levou a criada, levou até uma querida Irmã. E fez do passado um presente cheio de manchas negras, algumas delas fugindo - negras, negrísssimas - pelo bico da caneta quando poisa no papel, especada no trânsito do Alto da Serra e similares. A  caneta, a sua tinta, é permanente em memórias. Por isso chora lágrimas pretas, como se demonstra pelo fim deste tinteiro, em borrões derramados, pingando saudades e o derradeiro grito, o mais inconformado.

Mal por mal, vivamos o quotidiano... 

 

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