Acantonado junto ao Sado
Telefonava-me ontem um amigo, que ando eu fazendo? - perguntava ele - a estas horas e nestes complicados tempos, tão longe de casa...
Ri e fui a outra lasquinha de presunto, porque descobri, enfim, uma loja de ferragens cristã, onde comprei uma navalha de bom fio, e com ela petisco e corto e aguço canas, não se dê o caso de fazerem falta.
Fácil não seria transmitir ao meu amigo certas noções dos vagares em que, quando não, se arrastam os nossos viveres. Ocorreu-me até Virgílio Ferreira e aquela sua portentosa apreciação - «A luz um dia explicou-me. Não me explicou bem com as palavras de explicar, mas com a intensidade da explicação para eu pôr as palavras que faltavam»!... Até porque o amigo já adivinhava rabos de saia e eu atrás deles...
Sim, faltava, nos meus alvitres, desde logo a expressão nua e descarada de umas "pernas boas"; mas havia mais falhas e mais suaves - a mansidão de um olhar, a maciez de umas mãos, o ror imenso de notas do meu bloco, mesmo alguma lágrima que o humidificasse. A catástrofe do encontro com uma tribo belicosa, canibal, impiedosa. O fracasso, a retirada... Um silêncio veementemente mortal. Fome e sede, a longa caminhada a pé até ao comboio da salvação.
Com o primeiro e o segundo e toda a noite de beijos deixada de rastos entre telhados e pombos e outros desencantos.
Por sorte tinha abrigo de gente boa em Alcácer, e o Sado enche-me as medidas, saboreado cá de cima. Até a marginal, as suas ruazinhas sempre à espera de alguém que as encoraje, tudo me é um consolo. E por isso - concluia eu o telefonema com o meu amigo - aqui estou, petiscando enguias fritas umas atrás das outras, sem dar sossego ao meu caderninho e dono de uma nova companhia, uma galga velha que nunca vi bicho tão chegado à gente.
- Em Alcácer? Mas o que é que um gajo faz em Alcácer??? - (Pois... haviam-me falhado as tais palavras mães da intensidade da explicação...) - Eh pá!, quando voltar para cima, conto com mais calma. Mas olha que arrisco ficar aqui um bom pedaço de tempo, o bastante para trazer comigo as aves todas, dentro de uma máquina fotográfica... Se calhar, só depois da colheita do arroz!