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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas -12|Saudades, e muitas!

João-Afonso Machado, 21.03.22

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Eram dois rapazitos, o mais velho loirinho, o caçula amorenado, muito mimalho. Aprenderam a falar, a fazer perguntas, e viviam felizes sentados cada um numa das pernas do pai, ao seu colo ou às suas cavalitas... (O dito pai, por acaso, eu próprio.)

À noite, antes de fechar a luz para dormirem, a inevitável sessão de histórias improvisadas, uma girândola de personagens vindas dos quatro cantos da imaginação e juntas todas no mesmo episódio de perlimpimpim - o Hércules, o Astérix, o Tintin, a gentinha do Sítio do Picapau Amarelo, o Rei Leão... E quantos guerreiros lusitanos, revestidos de peles de urso, cocando do alto dos pedregulhos do Marão ou da Estrela, não lhes apontei em longas viagens de automóvel, maçadoras não fora o entretém e as espadas afiadas e as barbas hirsutas desses figurões...

A Primavera era uma vasta caçada de rãs e de tritões, às vezes de cobras, e as borboletas fugindo num alarido às redes atrás delas. Enquanto no Verão, em lugar da burguesa pastelice em volta da piscina (!) em Tróia, os mergulhões das lagoas, a pesca aos achigãs, passeios diários nos areais do estuário do Sado, com búzios gigantes, golfinhos brincalhões e as alforrecas traídas pela maré a lancear com canas afiadas. 

Correram anos de perfídia e guerra que tranformaram os dois rapazitos em ursinhos de peluche possuídos com ganância. Não fui capaz de os ter comigo, ao modo são das vidas que se constroem com ideias e ideais. Desorientados e desamparados do espírito, os meus filhos debandaram para parte que é nenhuma. Com a sua actual idade eu, já um homem feito, estava ciente de que muito ainda tinha para me fazer. O meu futuro seria a minha obra.

Assim me lembro dos dois filhos perdidos. Irreconhecíveis, postos num mundo burguês jamais o meu. Trago-os no coração, permanecem em fotografias do tempo antigo, para as quais tanto me doi olhar. As saudades são às toneladas, quase as mesmas toneladas do meu desgosto por sabê-los de uma apenas ilusória liberdade sem rumo. Algo com que nunca poderei contemporizar, apenas deixo correr... 

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)