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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio 52 semanas - 23|Académico

João-Afonso Machado, 06.06.22

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Em 1978 fui admitido na Universidade Católica de Lisboa que então se gabava do seu grau de exigência. E com razão, havia que marrar com força, para mim restava ainda a empresa de reaprender a estudar. Mas safei-me muito razoavelmente.

Somente, aquele mundo de engravatados precoces colidia com as minhas Levis gastas e remendadas, e eu não tinha qualquer anseio a figura pública na política ou fosse onde fosse. Tudo ali era uma linguagem que me causava repulsa. Quantas frequências preparei em demoradas viagens de comboio entre Lisboa e o Norte! Porque deixara de ir às aulas, lambendo a sebenta, afogando-a na cabeça e emergindo com notas muito regulares... Ao fim de dois anos pedi aos Pais - deixem-me transferir para o Porto!

Licença obtida. E no Porto logo dei conta, na maior felicidade, - estudava menos e tirava melhores notas. Foi esse o início da minha vida académica, uma "Queima das Fitas" que principiava em Fevereiro e só acalmava em Junho.

As serenatas nocturnas eram constantes, nos escolhidos lares de meninas ferreamente controladas por freirinhas. Os nossos fados eram agradecidos com cestos de víveres (comes e bebes) descidos à corda até ao imenso grupo de estudantes de todas as Faculdades. E, escasseando o reportório, mas não esse abastecimento, a mim competia esgalhar umas quadras que os cantantes adaptavam ao musical nascido em Coimbra.

Aquelas janelas fervilhavam de pequenas! Ainda hoje guardo mensagens escritas para o «loirinho»... E a palração prosseguia, quantas vezes, combinadamente, à luz do dia pelo tempo que houvesse de ser... Volta e meia, os pirilampos do carro da polícia cintilavam de azul no início da rua. Fora alguma freirinha mal-humorada a telefonar para a esquadra e impunha-se então dar à perna, na próxima concluiriamos o cantorio e as declamações...

Vivi em casa de uma tia-avô, uma senhora inigualável, infelizmente com a mania de não gostar de me ver chegar para dormir à hora a que ela se levantava para o dia. Depois partilhei um quarto barato com um colega, o mais compreensivo, jamais lhe ouvi um lamento pelo nosso quotidiano desencontro de horas.

Enfim, no derradeiro ano decidi levar a sério o curso. Atirei-me aos books, consegui notas que subiram a média final. Fiquei "Dr." em 8 de Outubro de 1984, mas senti-me desasado, quase deprimido. Bebi uns copos valentes com a minha tropa e dormi essa noite em casa de um grande amigo com quem fiz depois o estágio. Seguiu-se o primeiro escritório, num prédio a ameaçar ruína... E num repente chegámos a hoje... Da sobrevivência até à escrita, isso mesmo o que mais gosto.  

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)