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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio Arte e inspiração| Da alma para as mãos

João-Afonso Machado, 10.11.21

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Foi, enfim, decifrado o mistério. Uma adivinha, se quiserem, deixada à posteridade. Porque não? - se aos nossos olhos assiste todo o direito de verem apenas o que a alma lhes relata! E desenhar a bordo fornece todos os motivos da imprecisão, conquanto a Medicina garanta é um bom remédio para o enjoo...

Estaríamos em final de manhã de um sol mal definido, indeciso, gaguejando há horas com a actividade portuária. Incrivelmente quase no continente africano; inacreditavelmente rodeado de gruas e contentores, um fartote de aço que ridicularizava Hércules e parecia reivindicar o Atlântico para si, para volumosas quantidades de mundo.

O ferry-boat repleto de gente desinteressante, rotineiramente palradora. Perturbou-o a súbita visão do estuário do Sado, como se fosse o próprio, ali mesmo. E logo se quis envolto em conflitos cósmicos e com lugar no sem fim. O viajante, Joan Miró de sua graça, rodeado de ninharias, disse-lhe a sua alma ordenasse aos olhos topassem uma loira belíssima - especímen raro naquelas paragens - e, não sem alguma maldade, centrasse em tal prodígio a cobiça dos andaluzes e dos magrebinos.

Joan Miró, os dentes quase traçando a língua, arranjou-se conforme pode, mesmo porque a ondulação crescera, o vento levava agora consigo todo o ouro capilar da sua modelo - aliás, os tentáculos das gruas oscilando sobre a paciente espera do cargueiro.

Água, ferro e pedra, o firmamento e mercadoria, tudo se lhe amarelou e esverdeou nas mãos incapazes de disciplinarem os pinceis. Em seu torno, olhares às dezenas, curiosos, decerto críticos, tão absurda lhes surgiu a situação.

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E Joan Miró, agora ciente de que a sua única companheira de travessia era a esplêndida cabeleira de um corpo que nem o chamava, limitou-se a esboçar a realidade -  a sua realidade, Ceuta à vista, onde as órbitas de África e da Europa são quase tangenciais. Já saciado, algo arfante, transmitiu à sua alma - Eis aqui O cabelo perseguido por dois planetas que ordenaste os meus olhos detectassem na monotonia destes dias sempre iguais. Mas duvido os andaluzes e os magrebinos tenham dado conta do drama...

 

Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).

 

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