Desafio Arte e inspiração| O filho do almocreve
Uma noite desassossegada, tudo por atacado, encomendas de urgência. Duas levas para destinos opostos e o moedame oferecido que era um consolo, mas o prazo ficava na entrega amanhã cedo. O Fortunato almocreve absorveu-se em pensares, queria os dois pássaros na mão. E, posto a cear, deu por certo, o seu filho havia de ser homem do ofício. Ele e a mula correriam a noite através dos montes; o moço, no burrico, iria sem outra, à vilória do fundo do vale entregar as amêndoas.
O moço, aspirante aos estudos, já lido na Bíblia e em autores contemporâneos, não teve mais remedeio... - Pois sim, meu Pai...
Por tais jeitos o Zeferino, ainda quente do caldo, emborcou um pedacito de aguardente, e outro que o Fortunato lhe deu de prémio. Alabardou o jerico e partiu nessa noite de breu. Uma milha andada, pingava da cabeça aos pés. A chuva não perdoava e voltar atrás seria, pobre Zeferino, aquentar o lombo com a correia do pai, antes o padecer até ao destino.
Chegou ao povoado. Havia que passar a ponte e o obediente burro não atrapalhou. Mas, a meio, a escuridão só lhe dava olhos para o tropel das águas crescidas na tempestade que tudo inundava. Sentiu-a rondar o tabuleiro dessa ponte, lembrou a desgraçada Maria Moisés, camiliana afogada nas poldras de uma noite assim, levada numa torrente de força igual.
Foi a angústia. O momento psicológico em que a cabeça, cheia de nada, se enche de pensamentos maus, desencaminhados, perversos e desvairados, assassinos. O moço Zeferino anteviu a morte eminente. Largou a arreata da besta, deitou as mãos aos ouvidos escusando-se à realidade que congeminara, sentiu o persistente propósito de se lançar ponte abaixo... - e gritou, gritou, sem intentos de se mexer. Tudo uma vertigem. Estava na borda do abismo, no adoidado perigo de se não opor à irrazoabilidade, ir de cangalhas no medo.
Já nao era ele; somente o que algum benquisto salvador quisesse fazer dos seus restos mentais. - Socorro, socorro, aqui d'El-Rei, que eu morro!... Porque quem hesita entre a vida e o fim sempre clama por alguém.
Assim Edvard Munch captou o desespero e pintou o seu "Grito". O inconsciente das gentes, as suas desordenadas locubruções, o terror da dualidade que é a atracção pelo abismo... O José da Xã, caro amigo e homem de aldeias e tempestades, digo eu, - sempre haverá presente este momento alucinante. E por isso o terá trazido à ribalta.
Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).