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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio Arte e inspiração|O Sobreiro Grande

João-Afonso Machado, 20.10.21

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Nunca tive outro ofício. Nasci entre sobreiros e entre sobreiros vivi e casei, que a família da Mulher também andou sempre nestas lides. E ambas - a minha e a dela - trabalhando para o mesmo patrão, o mais rico de muitas terras em redor. Porque isto, todos os anos, são carroças e carroças a saír daqui, carregadinhas de pranchas de cortiça, consta que a caminho do norte, onde estão as fábricas das rolhas.

O patrão é muito rico, mas conhece bem o que tem e sabe governar as suas propriedades. Nós lá as vamos vigiando, com vagar para as nossas hortas e uns biscates, até Agosto, quando é de pegar no machado e começar a descortiçar. Diz o patrão, não há mais habilidosas mãos do que as minhas, conforme as herdei dos meus avós, "machados" de alcunha posta e apelido firmado por esse jeito vindo tão de trás.

Pois em toda esta extensão um sobreiro restava que se plantou no coração do patrão. Diziam-no com mais de 300 anos, e consta ali se enforcassem, antigamente, os criminosos e se deixassem as suas cabeças espetadas nos galhos. Era o pai do sobral inteiro! Dele já não se extraía cortiça, apenas a sombra a refrescar o mundo todo! O Sobreiro Grande dera até o nome a um tasquito na berma da estrada que passava perto. E, certo era (o patrão nem queria tocássemos no assunto), os seus ossos - o nervo dessa árvore com o berço esquecido -  andavam já a fraquejar.

Mas no final do inverno, uma noite de tempestade das bravas, o Sobreiro Grosso rachou dois metros acima do solo e tombou para sempre.

Ia dando uma coisa ruim ao patrão. Retirou para a cidade, deixando ordens para encastoar em pedra e cal o pé que ficara hirto. Veio o povo todo testemunhar o desastre, o jornal falou dele e dos "medonhos matos" da herdade. Que procissão! Parecia mesmo os filhos, netos e bisnetos da velha árvore a aproximarem-se para a velar. Duas sobreirinhas novas, descortiçadas por mim a primeira vez ("depiladas", diz o Manel Barbeiro, a rir), choravam ante a falta de remédio para um cadáver a perder cores. (Que aquilo só era lenha para as lareiras.) E a mãe delas, muito entrada nos anos, coxa larga e meio empenada pela vida, apanhou-a o José Malhoa também sucumbida, - as mangas arregaçadas, já familiarizada com a morte - e assim a retratou.

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Não sei porquê, zanguei-me e ainda lhe atirei - Ó compadre Malhoa, vossemecê não tem mais que fazer? Deixe lá as maleitas, vossemecê que se gaba de ir tanto à cidade, ocupe-se com uns fados e o mar, dê trato a mulheres bonitas, não seja o pacóvio que anda aqui em tais artes de tristeza! Diz-me assim o compadre - Compadre Machado, não venha cá com lérias que isto não é obra minha mas do Senhor Rei D. Carlos!

E eu calei muito caladinho. Afinal de contas, Sua Magestade era o dono desse sobral sem fim.

 

Publicado no Desafio Arte e inspiração do blog Porque Eu Posso (https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/).

 

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