Desafio da Abelha|A preto e branco
Isto contava o velhinho nas suas espreguiçadas tardes à mesa da leitaria. De olhar sonhando através da vidraça as cores mirabolantes que não guardara.
Vestia sempre o mesmo enlutado fato tão em contraste com as barbas de neve e a voz viva e aflita a embrulhar-se em histórias ressessas de jornais extintos. Fora tipógrafo na sua vida activa e ainda agora trazia nas mãos o cheiro antigo dos linótipos e das tintas. E obsessivamente referia a extraordinária poesia e o irreconhecível vulto que, quase todas as semanas, a entregava no jornal para ser publicada.
Um véu encobria-lhe a cabeça e distorcia a voz assoprada, deixando apenas a certeza de que homem não era, mesmo porque não o consentiam tão frágeis e sensiveis estrofes.
Apaixonei-me! - exaltava-se o inconformado, e de súbito genioso, velhinho. E assim não resistiu a seguir a misteriosa personagem, por trilhos tão esquecidos que nunca soube como regressara após.
Mas ficou-lhe para a vida a figura estranhamente acomodada na cadeira do jardim. E o multicolorido das aves e das flores em volta dessa gata em corpo de gente, a cabeleira vasta e solta, atrevidamente vestida, esguia e ágil, sorridente. A dar-lhe a mansa ordem - Vai! Não me perturbes a leitura. Tu não és do meu tempo, nunca entenderias...
E ele foi. Não mais o seu jornaleco recebeu aquela poesia sussurrante. E o velhinho, carregado de remorsos, ainda hoje com o seu lápis roído pelo desespero desenha e volta a desenhar a visão dessa tarde, cujas cores em vão há décadas tenta reproduzir.
(Desafio da Abelha - https://anadedeus.blogs.sapo.pt/os-desafios-da-abelha-conta-a-historia-43050)