Desafio lápis de cor| O verde batráquio
Foi uma das primeiras a acordar do longo sono do inverno. Ainda na alvorada, um sol tímido (mas que se adivinhava senhor para o céu inteiro), nascendo por trás dos cedros e dos pinhais, já a lançar os seus raios pelas frinchas do arvoredo.
Espreguiçou-se, rodejou bem o olhar e arejou o verde da sua derme, bastante embolorada por tantos meses de hibernação.
A Primavera estava aí. Não ainda no calendário mas já nos andamentos do clima... O charco enverdecia a condizer com os tons da sua roupagem - e o charco reclamava agora a sua veterania, a sua guarda. Perdera a conta aos anos corridos desde que fora promovida de girino a rã. Épica metamorfose, a terçar armas contra tudo e contra todos - as cobras traiçoeiras, de olhos gelados, as sombras agoirentas das asas dos milhafres, as crianças traquinas e os seus frascos de vidro, largadas à solta nos lamaçais, a caçar a bicheza... e o Zecaré, o tremendo Zecaré...
Escapara sempre. Era a mais velha e, por isso, uma autoridade no charco. No qual, chegando a maré, depositaria milhares de ovos, perdendo depois a conta aos insucessos, tantos eram eles, da sua vastíssima prole.
Assim agilizada entrou de cabeça e se ginasticou, com vigorosas braçadas, naquelas suas águas. Depois emergiu entre a vegetação de superfície e guardou uns minutos de silêncio observador. Estática, os olhos semicerrados. Mas não, não andava ali a grande garça, nem aves de bico perfurante... nem mesmo o maçador Zecaré. Padeceria agora de reumatismo?
Encheu então o fole, e lançou o seu primeiro brado. Escutou atenta: não era o eco, uns metros adiante; também acobertada numa moita de ervas, uma sua comadre entrara com ela a coaxar. E mais além outra e outra e outra... O charco transformou-se num parlatório infrene, o resultado de quase meio ano de silêncio. Mesmo dormindo, mesmo não se alimentando, os batráquios esverdecem de novidades e dessa tagarelice em que, entre machos e fémeas, há muito bailarico e corações gémeos e prolíferos.
Será assim meses a fio, manhás, tardes e noites, pontualmente desassossegadas pelo alerta - Vem aí o Zecaré!!! -
- afinal, somente, o cão da vizinhança, que gosta de cortar a direito nas águas verdes do charco, onde as rãs se mimetizam e, é claro!, não possui a destreza bastante para concretizar o seu velho sonho de abocanhar uma delas.
Nem as rãs imaginam o perigo maior que as ameaça: na casa acima, em noites de serão e calor, ouvi-las coaxar invoca ideias sinistras, como a desse pitéu francês, les cuisse de grenouille... E aquela gente, metendo-se-lhe uma na cabeça...
(Desafio da Fátima Bento - https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/olho-verdagua-486001)