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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio lápis de cor|Os citrinos

João-Afonso Machado, 24.02.21

LARANJAS.JPG

Em tempos que (há muito) já lá vão, as nossas caçadas às perdizes eram em Carrazeda de Ansiães, Trás-os-Montes, nos socalcos sobre o rio Douro. Jornadas dificílimas, iniciadas no alvor do dia e concluindo em almoços tardios em que toda a magresa ganha era compensada por uma feijoada de arromba e uns quilos mais... Anos e anos assim, um percurso de fome já sobejamente conhecido e, a páginas tantas, o lugar almejado de uma laranjeira quase estéril, às vezes oferecendo uma, duas, laranjas. Em bulha repartidas pelo grupo... A seu lado, uma poça de água onde cães e caçadores - estes de mãos em concha - sorviam ávidamente a pouca água para tantos sedentos.

(Lembro, uma vez, quase ter bebido uma rã; mas isso ficará para o episódio dos lápis verde-claros...)

Era assim a vida nesses lugares quentes de fruta doce.

Já no meu Minho, húmido, frio, sempre verde, as modas eram outras. Árvores citrinas não faltavam. Infelizmente, acrescento, porque a laranja, na sua época, era sobremesa das perigosas - a laranja, quem não a saiba lidar, expele um líquido venenosíssimo que (por exemplo) atingindo um olho, pode provocar a cegueira. Além disso, defende-se numa casca inexpugnável, mais a sua sobrepele, e uns gomos ácidos, corrosivos... Quando tal, até tem umbigo! Uma trabalheira que não paga o efeito. Sabedora desses meus temores, a minha querida Avó transformava as laranjas numa compota agridoce - aquilo ia casca, ia tudo, - no Inverno, em torradas com manteiga, o primor dos requintes. Mas isso era a Avó para o seu neto e afilhado. Antes de uma terrível revolução, o depois de a Avó me ter faltado, em que as laranjas se alaranjavam às refeições e a diplomacia aconselhava pretextos - a Mãe dá licença, ai, ai, ai? (as mãos aflitas, agarradas ao ventre...) -  para me levantar mais cedo, assim dispensando a sobremesa...

Ainda na mesma coloração, as tangerinas, outra música. De casca leve, pesando, e vergando ao seu peso, as tangerineiras, doces, sempre doces, bolinhas doces que iam de um trago só, sumarentas, sem peles, sem espicharem..

(Santo Deus, quando a laranja da sobremesa dava para ser seca, iliquida!!!)

E finalmente as toranjas. Enormes, quase melões em tamanho. A gente nova do campo contorcia-se filosofando sobre para que serviam as intragáveis toranjas. E foi uma tia de tanta saudade, alemã de nascimento (suprema gente germânica!) que, então, explicou: a toranja, cortada a meio, embebida em vinho do Porto, devidamente açucarada e comida com colher de chá, até raspar a casca, era um manjar. E era! O meio termo entre a acidez e o doce, vitamina C com força,  e as outras vitaminas todas, nem sei quais, assaz mais saudáveis, contidas na sacarose.

Depois... Uma égua engasgou-se com uma laranja abocanhada na laranjeira, Ia asfixiando. Veio o veterinário que somente sabia de vacas, porcos e vacinas dos cães... Foi o cabo dos trabalhos! Valeu a árvore ir rente, e ainda bem - a Avó há já tanto tempo não fazia a sua compota, e aquelas laranjas eram uma ameaça constante de semanas e semanas de mais do mesmo...

 

(Um desafio da Fátima Bento - https://porqueeuposso.blogs.sapo.pt/olha-cor-da-semana-459998)

 

 

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