Desafio Trinta Dias de Escrita|Ora pro nobis
Os seus dias eram de vagabundagem. Sobretudo no asfalto junto à fronteira, onde o filão de migalhas deixadas pelos viajantes parecia sem fim. E, se assolada por algum intruso, saltitava a pés juntos e, quando tal, abria as asas e levantava voo. Nunca esquecendo palavras de incentivo aos pobres, a aconselhá-los, se lhes topava na expressão a ignorância desse longínquo lugar. - Cuidado, cuidado, por aqui, cuidado, toda a atenção é pouca...
Compadecia-se sobretudo dos desgraçados da "boleia", uns miseráveis de dedo esticado na berma da estrada em que circulavam carros luxuosos, repletos de famílias na ânsia de concluirem a viagem.
Assim as horas famintas criavam amizades e diálogo. - Atenção, atenção a essa máfia, eles exigem, atenção, eles coartam mesmo...
Porque, sobre o tempo e o cansaço fronteiriço, de barato se falava em autocarros a preço zero, transportando vítimas até à cidade mais próxima. Era recorrente: depois de dúzias e dúzias de automóveis a transbordar de passageiros, de muitos adeuses mais ou menos trocistas, os pobres coitados, mais ou menos sedentos e esfaimados, sustinham o espírito nos horários dessas miríficas camionetas benemerentes. Até que uma chegou e eles, no maior alívio, entraram e partiram rumo a um almejado merecido almoço.
- Cuidado, cuidado! Atenção, atenção!...
Assim ela avisava. Dois peregrinos cara a cara com o condutor e o seu auxiliar. Ninguém mais... - Euros, euros? - Mas quais euros?! Isto é transporte gratuito!
- Euros, euros... - E, em folha de caderno quadriculado, os meliantes rabiscaram um número exorbitante.
Azeda troca de palavras. - Give me a ticket, my ticket, please! - Não, não havia tickets, somente havia uma tentativa de extorsão. E um punho já fechado avançando para os burlões foi travado pelo bom senso do saltimbanco mais jovem. Conforme entraram, saíram. - Pois, pois, eu não vos dizia, pois, máfia, máfia...
Tudo terminou em trajecto num taxi honesto. O dia continha ainda muitos quilómetros a digerir, e tal episódio a esquecer. Dele ficou apenas a gratidão pela companhia, a memória da amiga gralha-cinzenta sérvia.
(Se é que estes bonitos e espertos alados têm nacionalidade.)
(Publicado no Desafio 30 Dias de escrita - https://rainyday.blogs.sapo.pt/tag/desafio30diasdeescrita)