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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Desafio Trinta Dias de Escrita|Ora pro nobis

João-Afonso Machado, 14.09.21

GRALHA CINZENTA.JPG

Os seus dias eram de vagabundagem. Sobretudo no asfalto junto à fronteira, onde o filão de migalhas deixadas pelos viajantes parecia sem fim. E, se assolada por algum intruso, saltitava a pés juntos e, quando tal, abria as asas e levantava voo. Nunca esquecendo palavras de incentivo aos pobres, a aconselhá-los, se lhes topava na expressão a ignorância desse longínquo lugar. - Cuidado, cuidado, por aqui, cuidado, toda a atenção é pouca...

Compadecia-se sobretudo dos desgraçados da "boleia", uns miseráveis de dedo esticado na berma da estrada em que circulavam carros luxuosos, repletos de famílias na ânsia de concluirem a viagem.

Assim as horas famintas criavam amizades e diálogo. - Atenção, atenção a essa máfia, eles exigem, atenção, eles coartam mesmo...

Porque, sobre o tempo e o cansaço fronteiriço, de barato se falava em autocarros a preço zero, transportando vítimas até à cidade mais próxima. Era recorrente: depois de dúzias e dúzias de automóveis a transbordar de passageiros, de muitos adeuses mais ou menos trocistas, os pobres coitados, mais ou menos sedentos e esfaimados, sustinham o espírito nos horários dessas miríficas camionetas benemerentes. Até que uma chegou e eles, no maior alívio, entraram e partiram rumo a um almejado merecido almoço.

- Cuidado, cuidado! Atenção, atenção!...

Assim ela avisava. Dois peregrinos cara a cara com o condutor e o seu auxiliar. Ninguém mais... - Euros, euros? - Mas quais euros?! Isto é transporte gratuito!

- Euros, euros... - E, em folha de caderno quadriculado, os meliantes rabiscaram um número exorbitante.

Azeda troca de palavras. - Give me a ticket, my ticket, please! - Não, não havia tickets, somente havia uma tentativa de extorsão. E um punho já fechado avançando para os burlões foi travado pelo bom senso do saltimbanco mais jovem. Conforme entraram, saíram. - Pois, pois, eu não vos dizia, pois, máfia, máfia...

Tudo terminou em trajecto num taxi honesto. O dia continha ainda  muitos quilómetros a digerir, e tal episódio a esquecer. Dele ficou apenas a gratidão pela companhia, a memória da amiga gralha-cinzenta sérvia.

(Se é que estes bonitos e espertos alados têm nacionalidade.)

 

(Publicado no Desafio 30 Dias de escrita - https://rainyday.blogs.sapo.pt/tag/desafio30diasdeescrita)

 

 

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