... e Trancoso também!
A medievalidade do castelo nesse dia passou despercebida. Cá em baixo, já fora da muralha, D. Dinis impacienta-se e o seu séquito guarda um respeitoso silêncio. Talvez nem mesmo corresse a brisa, e murchavam as flâmulas e o ânimo dos ginetes. A Princesa de Aragão, D. Isabel, demorava-se e as cerimónias do seu casamento com o nosso monarca tinham sido ajustadas aqui para Trancoso.
Mas ei-La, enfim, chegando, após arrasadora jornada. Os reais noivos, miram-se, apreciam-se reciprocamente e vão-se conhecendo, como ainda agora na pedra que os perpetua.
Saindo do seu embaraço, D. Dinis apontaria as Portas d'El-Rei e galantemente cederia a primazia da passagem a D. Isabel de Aragão. Fora do seu mando a construção da fortificação que tempo algum demolirá sem que Portugal não caia também.
Porque tudo Trancoso guardou na sua alma e tudo transmite aos viajantes. Ali sintonizamos a História e experimentamos os trilhos dos mistérios: a quem pertenceria, afinal, o "Paço Ducal" que, uma década atrás, conheci vivinho e sóbrio, muito alumiado à noite, e hoje se desmorona lentamente, barrote após barrote?
Entaipado, destelhado, porventura foi seu dono o filipino Marquês de Trancoso, que as páginas dos nossos anais desprezaram... A vila (hoje cidade) fervilhava de actividade nos seus muros, nas suas vielas, e talvez a comunidade judaica levasse vantagem na mercancia. Bem organizada, respeitada à moda das eras, legou-nos partes do seu bairro, da sua sinagoga, entretanto recuperada e oferecida ao culto dos fieis da Tora, mesmo os que vêm de longe. Lindos arruamentos, floridos das muitas cores das hidranjas, cuidados e estreitos como todos os lugares das gentes que se defendem na discrição.
Assim se compreende, a, dos nossos dias, Casa do Gato Preto integrasse também o recanto dos hebreus e - qual gato! - na sua fachada, em baixo relevo, ostentasse o leão deles, o leão de Javé.
Nada ou ninguém, todavia, alcança em Trancoso tanta visibilidade como o sapateiro e poeta, profeta inato, o visionário Gonçalo Annes Bandarra, dito o "Nostradamus português". Uma pena, uma voz, que se adivinham com tantos sentidos interpretativos quanto cavadas nas profundezas da alma sua, expressando-se guturalmente, alegoricamente.
Também a sua casa, lá nos meandros da judiaria, chegou até nós conservada em museu. Homem da segunda metade de Quinhentos, o Bandarra escreveu afincadamente as suas trovas em que augurava toda a grandeza e eternidade de Portugal. A fonte de inspiração seria o Antigo Testamento, circunstância que lhe valeu umas idas a Lisboa e bastantes dissabores com a Inquisição. Mas a essas mesmas suas trovas muito se agarraram os nossos antepassados, quer durante a Dinastia dos Filipes, quer depois, aquando das invasões napoleónicas. E aqui na vila estanciou, neste último aperto, William Carr Beresford, o Marechal Beresford, e Conde de Trancoso por mercê de D. Maria I (1811). Também a sua residência se guardou para a posteridade,
simples e acolhedora, palco quase despercebido das mais graves decisões militares de tão desesperançados dias.
Ando de novo em torno das muralhas. Ficou-me no espírito a lojinha que a anciã, sua dona, ao balcão, não me deixou fotografar: caixas e caixas de botões e de carrinhos de linha, livros alfarrabizados, after-shaves contemporâneos do Bandarra (eu não descanso enquanto não reencontrar, nestes mundos perdidos, um Pitralon...), quinquilharias e, dependurada do tecto, uma placa metálica azul, informando - «Agentes Oficiais do Banco Espírito Santo Comercial de Lisboa». Valha-lhe Deus, não entre a polícia por ali dentro com um mandato de busca, a assustar ainda mais a velhinha.
A despedida processou-se através das Portas de S. Pedro. O distrito da Guarda reserva-me ainda muitas outras surpresas, certamente.
E, juraria, à minha frente, a dar-me a comer o seu pó, a real comitiva, de abalada também. Para o longo reinado de um dos nossos mais cultos e previdentes estadistas e da nossa Rainha Santa, aragonesa tão nos sentimentos dos portugueses.