Kalna, na Sérvia
Partimos, finalmente, em direcção às altitudes balcanicas. Num Toyota, decerto por milagre, safo das inquietações bélicas do passado recente, mas não ileso...; carregado de sacos de cimento e, no banco de trás, transportando um verdadeiro tesouro - dois portugueses de gema, eu e o meu filho. O resto eram curvas sobre curvas e o curioso costume sérvio de comer pizza e beber coca-cola enquanto se maneja o volante. Umas dezenas de quilómetros assim.
E depois o súbito desvio, junto a uma povoação, para um trilho serrano. O casario cada vez mais esparso, a sensação do abandono, a florestação total... - tinhamos chegado!
Aonde? Ao nosso destino, evidentemente. E o nosso destino consistia numa aldeia esquecida dos pastores, construções de rastos que um grupo de gente nova sérvia, ainda cheia de força, tenta recuperar. Por isso o cimento na mala do estenuado Toyota.
Ali se vive, se criam galinhas e se trata das hortas. Ali se filosofa e sonha, pacificamente, com a "revolução". E ali proliferam cães e gatos, às ninhadas inteiras, na maior anarquia. Como quer que seja, ali gosta de estar o meu filho, e tão amavelmente receberam o seu pai, monárquico e anárquico, mas sempre clássico.
Ao dia seguinte, dormidas umas horas, tomei um pequeno-almoço de água dos Balcãs, enchi-me dela, e parti em exploração, monte abaixo, cercado de carvalhos, abetos e outras frondosidades.
À medida que ia caminhando, a vida humana ia despontando em jeito mais organizado.
Habitações realmente habitáveis; os palheiros feitos de ripas de madeira, melhor ou pior conservados; os canídeos, sempre hospitaleiros; mulheres fumando, de unhas pintadas e forquilha nas mãos, tentando com gestos e monossílabos explicar o percurso para a vilória; surreais aparições, como os restos mortais de uma camioneta dos Fifties, entre o matagal;
e os inevitáveis rebanhos de cabras e ovelhas.
Eu estava em Starakalna, traduzindo, qualquer coisa como Kalna-a-Velha. E, no termo de alguns três quartos de hora a pé, avistei a estrada, o desvio do dia anterior, e a beatitude de Kalna, onde se estabelecera o grosso da população.
Tem um posto da Polícia, esta Kalna,
e tem um hotel que, segundo apurei, se mantem fechado porque falta ao dono pachorra para aturar os hóspedes, algo que o transformou no meu heroi local, a força capaz de enfrentar e vencer os chatos.
Kalna tem duas fieiras de prédios com três andares e muitas pilhas de lenha encostadas às paredes, para obstar aos rigores da invernia. Mais um esquecido posto de turismo de montanha, fechado a sete chaves, e um - ou uma? - veterinarska, o primordial termo sérvio da minha aprendizagem.
Conquanto o mutismo do consultório não indiciasse o seu estonteante sucesso...
Por fim, os restaurantes, com as suas esplanadas, e as mercearias de caras viradas para a rodovia. Numa daquelas assentei, almocei e gozei a tarde.
O repasto consistiu numa excelente, tenrinha, carne de porco com batatas assadas. E cerveja (leve, de baixo teor alcoólico, como a venho bebendo por toda esta região), a bastante. O sol refulgia, o ruído automóvel rareava. Os cães de Kalna vinham até nós, por um pedacito de comida, e voltavam à estrada, onde se estendiam como se na praia fosse.
Eis, então, surgiu o meu filho, já preocupado, não fosse eu me perder nos altos e dar de caras com algum urso. Sentou-se, conversámos, manifestei-lhe quanto me aprazia um vagar assim. Ao longe, um malhar de motores que me era familiar, os cães enfastiados a erguerem-se,
e a circulação de algo que já não via desde os meus 18 anos, talvez. Um tractor, um Massey Ferguson, o primeiro que o meu Pai comprou, a viatura de urgência nas minhas escapadelas de juventude. Louvado seja Nosso Senhor, que tanta foi a asneira e nenhuma desgraça brotou, a colorir as páginas dos semanários famalicenses da época!...
Mas na Sérvia, confirmei depois, ainda não há outros modelos disponíveis. Apenas esse Massey Ferguson que eu tanto gostava de ver curvar em três rodas... - Filho, vamos subindo que se faz tarde... - disse, num assomo de saudade.