No Ferrol (A Coruña)
Posta no pico da Galiza, nas margens da Ria com o seu nome entrando muito desembaraçada terra adentro, ficava a ideia de uma cidade marítima vivendo ao ritmo das marés no trautear das embarcações piscatórias.
Assim o Ferrol me pregou a maior surpresa, não tanto pelas suas dilatadas dimensões quanto pela habilidade com que se esconde e tapa os olhares à Ria.
Mesmo porque o Hotel Silva (eu li "irmão" em "Silva"...) ficava num alto incaracteristico, feito de sucessivas encruzilhadas de ruas todas iguais e distantes da zona ribeirinha. Esta adivinhava-se pelos pescoços monstruosos dos guindastes, mas foi um tormento alcançá-la enfim.
Muito por causa da Marinha, como se a guerra permanecesse no Ferrol.
Os portões às catadupas; o muro da fortaleza quase a muralha da China. A parte histórica da cidade pertence ao Arsenal Militar
e à Navantia, uma sociedade que administra os estaleiros e as poucas migalhas de vistas para as águas.
Só chegando, sem mapa, ao Paseo da Marina pude assentar numa esplanada frente ao Peirão de Curuxeiras e gozar finalmente duas canecas de Estrella Galicia e uma dose compacta de veleiros, lanchas e botes.
Aí consegui tirar umas fotografias no intervalo de uma diplomática e inacabável conversação com duas galegas manas, ambas de dentes muito amarelos do tabaco e de uma amabilidade que me conduziu, no carro delas, de regresso ao Hotel Silva.
Bem hajam as duas senhoras, ferozes castigadoras da memória do Caudillo e espíritos fieis à de D. Juan de Borbón. Eu creio que uma delas apreciava o tinto espanhol, no qual me aventuro pouco... Ainda assim acabei sabendo que, por trás de nós, ficava a Madalena, o que restava do burgo antigo, ainda e sempre escondido por muralhas.
Pois o dia seguinte usei-o a explorar a Madalena, um xadrês de ruas pedonais com artérias de um só sentido automóvel. Complicado... Estimei o Paradoro do Ferrol e o seu mirante e estranhei o pouco comércio, o alheamento que ia pelas ruas pejadas das costumeiras varandas espanholas
e com um ou outro edifício mais pitoresco.
(«No Ferrol, até ao ano 14, vivemos numa casa da Rua do Hospital» - escreveu Gonzalo Torrente Ballester, que daqui era natural, em O Sangue, o Vento, a Guerra e Outras Histórias. Mas não dei com ela, com a Rua do Hospital, somente com o Centro Torrente Ballester que, de resto, não visitei, conquanto aprecie imenso o escritor.)
Nada que não se visse de uma penada só, e apenas uma loja de velharias e de livros em segunda mão, com uma montra convidativa, me podia impedir de corresponder a um chamamento vindo quase do Além: era o Castelo de San Felipe.
Até lá, praias minusculas e o palco de mergulhos gelados de heroicos galaicos
bem como a intensíssima percepção de os montes que se erguiam e estreitavam no desembocar da Ria do Ferrol em águas atlânticas.
A modos de dois marinheiros do Arsenal, o castelo de San Felipe, do lado de cá, e o de A Palma, no de lá, vigiavam muitos séculos de movimentação marítima.
Mas daí, graças aos Céus, vinham imagens mais cheias da Ria,
dos navios de grande calado atracados, dos gestos portuários que a animavam.
Do Ferrol me bastava. Voltei ao hotel, não sem antes jantar em O Pazo - vinos y tapas, já vizinho, a dona já conhecida também,
afora o seu jamais proclamado nome, substituído pela sua fantástica ronha. («... uma criada nossa que cantava uma canção galega carregada de malícia que a mim, na altura, me passava despercebida»... - Torrente Balester, obra cit.)