O Barreiro
É a outra margem. O inóspito lugar de outra imagem: encarnada e impiedosa, sobremaneira politica, barulhenta e povoada de fatos-de-macaco e chaves-de-porcas. A viver nas alturas dos guindastes e das gruas e dos prédios encavalitados. Enfim, sempre assim pensei, quase num medo dos infernos da catequese. Até aos dias de agora, quando me decidi à travessia do Tejo disposto a confrontar a mitologia.
Basta a referida viagem náutica para abrandar a ira dos deuses...
As águas um modelo de quietude. O ferry absolutamente desprovido de pressas, a gozar também o fim da semana. E o Barreiro a tomar formas mais consistentes, depois da atracagem, ainda assim pouco entusiasmantes. Um parque de estacionamento, a fatal rotunda e uma breve ameaça da tremenda propriedade horizontal.
Também Gil Eanes se assustou na eminência do Bojador. Mas seguiu em frente... Nós (eu e o meu octogenário amigo) do mesmo modo procedemos, desta feita em marcha de infanteria, inquirindo aqui e ali, sobre o Barreiro primitivo, onde era?, até darmos com a placa «Zona histórica», essa tal que nos levaria aos encantos mais recônditos de antes da cavalgada dos humanos. O percurso não trepava orografias nem sociologias - somente ia andando nas proximidades ribeirinhas. Dando a conhecer, por exemplo, vestígios de moínhos de maré
e também dos seus parceiros impulsionados pelo vento, recuperados, visões do passado ou regalos do presente.
Outrossim no Barreiro uma Leticia, rainha da ameijoa ou do berbigão, dormindo sem sobressaltos a sua maré menor,
algo desmazelada, decerto, o outro lado do esplendor da magestade do Tejo. Eu diria: a sua intimidade. E, nela enfiadas, as omnipresentes damas de honor,
eternas vítimas da maledicência mas personagens jamais fora dos meus encantos. Gaivotas: ladras, pragas, zaragateiras... mas bonitas e bem postas. No Barreiro a demonstrarem que nem tudo é siderurgia, luta de classes e dormitórios.
O meu octogenário amigo contava os quilómetros corridos e reclamava cansado. A igreja paroquial não lhe podia valer, fechada como um túmulo, matéria somente, quase uma guilhotina fulminante sobre o pescoço do Espírito.
Foi o que a Magda nos confirmou, com um ar de "ali já ninguém mora, está esquecida"... A Magda, a proprietária do salvífico Moet, o bar onde mendigámos umas bifanas e umas canecas de cerveja, com o meu octogenário amigo assaltado por um súbito desempenho de galã, piropo sobre piropo,
e o patrão lá dentro a fatiar a carniça, a preparar-nos o comer e, por aquele andar, de faca em punho, sabe-se lá que mais... Enfim tudo correu bem, o meu octogenário amigo saciou-se, acalmou e foi a minha aberta para saber coisas. O Barreiro ali, além de um parque bem arborizado, são todas as ruecas de casinhas de um ou dois pisos. Algumas impecavelmente recuperadas mas estranhamente desabitadas; outras, muito depauperadas mas cheias de gente, roupa a secar na via pública, antenas parabólicas aos montes, carros mal estacionados...; um bom lote delas em completa ruína desaproveitada.
Outra vez a Magda elucidando, aquilo era o cancro do seu negócio, a vizinhança pouco amistosa e, por isso, a clientela mais arredia à noite. Gabámos-lhe a destemida decoração do bar, as duas cabeças de bovinos na parede, os muitos cartazes antigos publicitando espectáculos de tauromaquia, via-se bem, a política não passava na porta do Moet. E com o meu octogenário amigo protestando veementemente, encetámos a volta de regresso.
Aqui e ali, os primeiros vagidos desses enormes cogumelos que hoje se estendem por áreas infindas. E os restos mortais do casario que pereceu envenenado por eles... O comboio vem até à beira-rio. Vem de Setúbal, trará gente como nós a apanhar o barco,
mas não sei se, como nós, tão envolta no espanto desse todo que é o céu e as águas e os pequenos cometas que rompem o cinzento nessa gigantesca abóbada.