O meu "Povo das Neblinas"
Todas as manhãs, chovendo ou azulando o céu, saímos. Pela vetusta calçada quase à moda dos romanos e no tempo das imensas florestas de uns segundos sob o arvoredo. Dona Mécia à frente, de uma coscuvilhice de nariz que a impede de apreciar esse instante amazónico e os dramas pressentidos entre as impenetráveis ramagens. Sobreiros anciãos, principalmente. E uma actividade infrene que se ouve e rasteia em muito vagos agitares das folhas.
(Dona Mécia, parada adiante, trata da sua higiene intestinal...)
Será o Povo das Neblinas de A Cidade dos Deuses Selvagens de Isabel Allende? Esses índios que conseguiam colocar-se no «estado mental de invisibilidade», «puros espíritos transparentes»?
(Dona Mécia permanece indiferente a este dito instante amazónico e fuça agora o plástico de um iogurte esquecido por ali; é difícil simultaneamente controlar a asneira e decifrar os mistérios das frondosidades...)
Decorrem minutos complicados. Um olho no solo, tentando menos escavações nas folhas secas dos carvalhos, e o outro na densidade dos sobreiros, em busca de alguma raridade, dos seus segredos piados baixinho. Pipilados.
Assim todas as manhãs. E alguns vislumbres aqui e acolá. Ainda hoje uma estrelinha, de cabeça para baixo mesmo sobre mim, debicando micro-insectos entre a vegetação. Há já algum tempo um chapim-preto, um pouco menos minúsculo do que a estrelinha, devidamente capturado e trazido como troféu.
(Dona Mécia, impaciente, querendo subir as escadarias que levam às divindades do asfalto e à cãozoada da vizinhança.)
E deste modo a expedição regressa do tal mundo do fugaz tempo debaixo das copas de três sobreiros inexpugnáveis. Com provas evidentes da existência do Povo das Neblinas de Isabel Allende.