O Porto é outro
Já não sei o Porto de tantos anos académicos e profissionais. Esse Porto de estúrdia e sobrevivência e de trabalho apostado nos meus filhos, mesmo quando as paredes já ruiam todas, porque foi um longo Porto de luta e cansaço.
(Valeu a grande senhora que me trouxe de retorno à terra, que me desapegou dos horrores burgueses e chulos que por ali pairavam... Outras histórias...)
Ainda assim, ficaram memórias muito centradas na Boavista e adjacências: vivi na Rua Cinco de Outubro, mantive escritório quase sempre perto de casa. O dia-a-dia ensinou-me as caras todas desse percurso de ida e volta. As da velha pedinte, sentada num degrau, do fumador inveterado que levou sumiço em menos de um fósforo; o vizinho da ilha, de canadiana a arrastar-se, sofrera um AVC; a simpática funcionária da loja onde comprava cartuchos, todas as manhãs perguntando pelos meus «cãezinhos», como se fossem os meus «meninos»...
O Sr. António, o seu tasco e os jantares nele; o Sr. Isidoro que acordou morto; o segurança do Delfina Pub, um lugar de orgias e notícia dos jornais... O restaurante indiano do Pracash, o seu sucessor, o perdulário Mário; e a menina nua à noite, no prédio do outro lado da rua.
E o Sr. Carvalho da drogaria! Ali comprei desde uma espingarda aos bocados, que ele descobrira nun ferro-velho, até aos after-shave da minha juventude, marcas esquecidas no tempo e no fundo de um armário, preços módicos, aromas pré-históricos. Mais recentemente, indo ao Porto, deparei com um camião onde o estabelecimento era vertido - Sr. Carvalho, que se passa? - Fechei, Sr. Dr., isto já nem paga a renda... - Despedimo-nos com um abraço, o Sr. Carvalho era de Esposende, para lá iria, despedimo-nos sabendo bem não voltaríamos a encontrar-nos.
A drogaria é hoje um snack bar razoavelmente chique. Como ela, tudo mudou na Cinco de Outubro. (Só não averiguei a casa de pasto do Sr. Joaquim, numa transversal, onde levava perdizes e javalizes e ia lá mastigá-los depois com ele...)
No mais, a Cinco de Outubro foi conquistada pelo tempo. (Não que me toldem as saudades...) Vieram abaixo as moradias ainda sobreviventes, as obras e as novidades multiplicam-se. Os velhos armazéns da estação da Avenida de França, onde dormiam os sem-abrigo e a polícia visitava com aparato e cães pisteiros, será em breve mais um empreendimento de luxo.
Mas, no meio de isto tudo, o arrumador de carros da rua, antigo boxeur, larápio de longa data para sustento do seu vício, ainda vive e arrasta os dias por aqueles passeios. Há mais de vinte anos! É preciso resistência.