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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

O requiem venatório

João-Afonso Machado, 28.04.22

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Sem dúvida, as urgências dos hospitais requerem a sua dose de sangue-frio. Talvez uma imaginação muito treinada em adivinhar o que está por baixo das batas das médicas e enfermeiras, há-as tão giras! Ou então capaz de improvisar um estudo das hierarquias conforme a indumentária - amarela, verde, azul, branca, de antemão se sabendo que o estetoscópio ao pescoço é sinal de doutor.

Vi-me agora na contigência de uma tarde toda na urgência, por causa de um joelho agonizante, já mesma sem forças para responder à bengala. Sucata. E, estranhamente, o tempo evaporava-se. Passeei de cadeira de rodas através de um circuito todo de corredores, encontrei um antigo colega do liceu, funcionário prestabilíssimo que, em menos de um fósforo, me desenrascou a radiografia, as análises e o soro analgésico. Nesta altura alarmei-me. - Vai dar-me uma facada?  - perguntei à enfermeira que me picava as costas da mão e a enfaixava depois. Ela viu um cagarola onde só existia a fobia da imobilidade, do aperto. E três senhoras ao lado desviaram o olhar com um suspiro que dizia - Valha-nos Deus!...

A enfermeira parecia engraçadota, centrei na sua proximidade todo o meu esforço mental depois ziguezagueando entre mil conversas circundantes, gente permanentemente a chegar, a Júlia Pinheiro no seu mudo disparate televisivo. Só me faltava o ângulo de visão para a maca onde jazia uma idosa, assustada e chorosa, durante horas a clamar - Cristo, valei-me! Cristo valei-me! - com uma tal gana pulmonar que a sua energia vital tranquilizava.

Uma tarde inteira. O número de utentes entrou a decrescer, eramos já poucos. Em Ortopedia fui mesmo o último, premiado com a tremenda nova: o joelho já não presta, roído pela artrose. Foram muitas quedas, muitos esforços, muitos quilómetros. É preciso meter uns ferros lá dentro.

Qualquer dia hei de pensar nisso. Não sei, não. Não vou para o monte de espingarda na mão e ferros no joelho. Assim ouvi, placidamente, friamente, o meu requiem venatório, decerto angustiado com a orfandade dos perdigueiros, esses pobres catraios.

 

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