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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Por S. Pedro do Sul

João-Afonso Machado, 23.08.21

Proclamou-se a "Capital das Termas". E por estas tudo começei: ali estabeleci o quartel-general, a menina Diana dos mais lindos olhos cinzentos esverdeados atendeu-me, serviu o copo de vinho, mas ignorava em que freguesia estava. Na Várzea - envangelizei. E fui descarregar as trouxas na residêncial.

Depois desci a saber mais destas margens do Vouga. Por onde se lavaram do pó e da tripa os romanos e, ao que se sabe, D. Afonso Henriques também; são, enfim, milénios e milénios de clientela arqueológica e patriota. Os vestígios restam óbvios, na pedra trabalhada, um conservante como outro não há. E no centro das Termas de S. Pedro do Sul, o Largo do Balneário Rainha D. Amélia (!!!), a excelente Senhora pelos portugueses tão injustiçada, ali firme, com o seu nome nesse tal estabelecimento vocacionado para relaxe e massagens.

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Um pouco além, o outro balneário, moderna construção apadrinhada pelo nosso primeiro Rei, onde a especialidade são os tratamentos de fisioterapia.

Calcular-se-á, o sítio das termas é fundamentalmente hoteis, pensões, alojamentos locais... No Largo que não deixa esquecer a nossa D. Amélia, sempre muito concorrido, assombrado pelas esplanadas, circulando de porta em porta nas lojas de artesanato e lembranças, isso mesmo se verifica, aliás com sobeja beleza.

HOTEL NA PRAÇA DO BALNEÁRIO DA RAINHA.JPG

As Termas de S. Pedro do Sul são essencialmente um território de idosos. Abundam as bengalas, a pacífica gente que ali busca descanso - e, sendo tantos e infindo o convívio, é a caixa das alegrias a abrir-se, o reencontro com as amizades de anteriores temporadas... Mas há gente nova também, famílias com os filhos pequenos, a usual busca de alternativas. Numa das muitas confeitarias pedi um "vouguinha", pastel de ovos e amêndoa típico destas paragens... E dei comigo no maior espanto - o Museu da Rainha D. Amélia, ainda não aberto ao público... O que sairá dali?...

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Tudo era movimento, mesmo o Vouga. A jusante da ponte, o Vouga está para obras! As escavadoras passeiam no seu leito barricado por línguas arenosas, num ar putrefacto de poeira em que a água se ouve distante, invisivel, furiosa do engarrafamento criado. Assim um fotógrafo se vira para o lado oposto a pedir imagens decentes, oriundas da ponte pedonal. E assim capta a gigantesca torneira laranja

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(uma ilusão à Luís de Matos), e o repuxo de tons bem engraxados pelos raios solares.

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A povoação (um termo demasiadamente rural, considerando esta ventania de forasteiros...) trepa a encosta em ruelas desconcertantes, autênticas ameaças à chapa dos carros. Mesmo porque tudo ali é branco, bonito, em multicoloridos de jardim. Como uma menina oitocentista e a sua sombrinha...

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Já noite feita, o jantar na residêncial. No imenso círculo de velhinhos, comeres de hospital - para mim a sopinha, uma posta de salmão, muito obrigado, e uma garrafinha desse branco tão ao jeito da pureza seminarista.

Entrementes: urgia explorar a cidade sede do concelho. Logo ao raiar da manhã seguinte. Cheguei, deixei o carro na primordial hipótese, entrei numa livraria para informações, e - imagine-se! - comprei um livro de Baptista-Bastos! Hei um dia de reflectir sobre estes actos isolados e incompreensíveis, literariamente absurdos. Posto o que marchei, em caminhos de urbe nova, e perguntei, perguntei, até dar com a veneranda S. Pedro do Sul. Encontrei-a no Convento de S. José,

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junto a esconsas ruas por onde dealbei até ao setecentista Palácio Reriz, o mais prestigiado da terra. Ao que apurei, ainda habitado pela família de origem, esse antigo pousio dos Reis de Portugal quando vinham a águas nas Termas.

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O palácio está acabadote, desdentado e meio cego. A seus pés, o antigo centro de S. Pedro do Sul e a Religião a apertá-lo de um lado e do outro. Ou seja: o magnífico edifício espreita, entre a Matriz e a Igreja de Santo António, para o antigo Largo da Rainha D. Amélia (outra vez a excelente Senhora!), hoje Praça da República - e nada mais agora senão um movimentadíssimo cruzamento de ruas onde, certamente, já não subsiste o falatório de outrora, políticos, curiosos, cuscuvilheiros, mensageiros e outros que tais.

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Por mercê do Grandioso, mesmo abaixo do Palácio, o Largo da Matriz. Um tecto de árvores, os anciãos da terra nos seus bancos a jogar ao cavaco de língua, sob a orquestra tocada pela pardalada. Benigno momento de repouso, do meu repouso, refrescado por meio litro de água. O calor não poupava, as forças iam-se...

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E tanto é, de S. Pedro do Sul dei após, somente, com a Fonte dos Namorados, um lugar de amor entre moradias de agora, a marca incontornável do crescimento urbano roubando os lugares onde antes a vida era tão singela quão prometedora, em tardes dominicais que - estou para saber... - galopavam ou se eternizavam.

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Voltei ao carro, no interior em infernais labaredas. Atravessei a ponte do rio Sul, confluenciando com o Vouga umas dezenas de metros à frente, e fui ver as modas. Havia um "vira" que me toldou o espírito - trutas! Sim, trutas neste pequeno curso, bem à vista do freguês, a dois passos da criançada no banho. Claro, em Agosto a sua pesca é proibida e as manhosas decoraram o nosso calendário! Já nem as trutas conseguimos manter no analfabetismo...

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Era um parque bem dimensionado. O sol morava no areal junto ao rio, a frescura sob a frondosidade dos plátanos. Tomei ar, pausei, olhei em redor. Muitos, nas suas mantas na relva, procediam igual. E a ninguém se escapava o húmido aroma das águas, avidamente sorvido. Ali, S. Pedro do Sul dormitava entre troncos de perímetro atlético e altura record...

Ganhei forças. Ainda havia muito combustível para gastar. Rumo à serra de S. Macário, em demanda das aldeias do xisto. Mais precisamente, de Fusaco, ou um percurso levado da breca. 

Por S. Félix, por Sul (que animadora casinha branca, de janelas verdes!),

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por montes e vales, devagarinho não fosse o diabo tecê-las, aspirando os sabores medicinais das folhas de eucalipto, a sua cantilena na brisa.

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Até lá. A Fusaco, cravada na encosta, bem camuflada, a pedra a encobrir a pedra.

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À chegada, o corregozito a morrer de sede, que a temporada das chuvas está longe e há que poupar, represar. Alguém disse já, a ponte é uma miragem...

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Ainda assim, nesse derradeiro reduto, uma cobrinha-de-água de descomunais dimensões. Tentei estabelecer diálogo mas mais não consegui senão, a uns centímetros, a sua lingua bífida, o medo disfarçado, eu a prometer-lhe uma vida melhor...

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Escapuliu-se na primeira oportunidade... Lamentei, seria, pelo seu porte, um troféu de valia guardado no bolso. Vistas as coisas, nada interessou o meu fatal olhar galã defronte ao seu, sempre glacial. E assim desesperançado subi a aldeia, não topando com vivalma.

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Casinhas, havia-as muitas, as de quem desconhece as restantes do mundo cá fora, e as dos habitantes deste mesmo mundo, que vão optando por vidas de eremita com antena parabólica. Ou é de mim ou estamos de regresso ao comunitarismo, com restaurante de luxo à porta...  Mas agora era tempo de mudar de ares...

O próximo poiso - o Poço Azul, na freguesia de Sobrosa, sítio previlegiado da ribeira da Landeira. Com o bólide sempre a subir, cheguei a uma largo com estranhas formas de piscina, dois tanques quase cheios, e uma roullote vendendo comeres. Mais a fatal esplanada. Perguntei, o Poço Azul era em baixo, meio quilómetro íngreme que eu desci, et voilá!

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A rampa dava bem conta do que seria o regresso, na sofrida e esfolada volta de quem tinha estado. Por fim, a piscina natural, a sua limpidez, talvez um convite recusado, tanto se avantajava a multidão, dentro de água, posta em toalhas de praia, berrando, berrando, berrando. Porque perdi as minhas notas, subi e desci três vezes esse calvário em busca do meu caderninho (e de umas canetas predilectas) que jamais reencontrei. Semelhante tristeza, só posso acrescentar, serviu de medição do meu folego para as perdizes. Talvez o velhote ainda participe em outra campanha...

No regresso às termas foi uma caixa de biscoitos e uma botelha de vinho de Lafões - eu estava incomodado, tanto pelos meus perdidos apontamentos quanto pelas canetas com que escreve este coração. Entre os mais desabafos, valeu-me a menina Diana, a sua companhia, senhora de uns olhos como outros não há nesta enorme Beira Alta.

 

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