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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Reflexões ferroviárias

João-Afonso Machado, 27.06.21

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A locomotiva ganhava pressão. O fumo da sua chaminé, soprado forte, anunciava para breve a partida. - Um bilhete em 3ª, fax'avor... - que os bancos de pau não doíam e estava-se no Verão, os varandins da carruagem deixavam o braço esticar, nas arfantes subidas da máquina, e as uvas das ramadas marginais eram o lanche. Tempo de praia, a mochila carregava todo o guarda-roupa e a cana de pesca também. Numa temporada balnear sempre com as mesmas calças, as botas da tropa e tardes e curvas alucinantes - à Giacomo Agostini - na Solex. Afora a fuligem na cabeleira, ao descer as escadinhas do vagão, vida mais limpa não existiria...

Sobreveio a cidade, os seus arredores. As saídas pós jantar, o regresso depois de esperas de horas estirados na Avenida de França e, por fim, o aviso ao trinca, - Ficamos em Mandim - caso contrário a automotora ignoraria o apeadeiro e afundar-se-ia nos breu da madrugada, para a Trofa, para Guimarães.

A Faculdade em Lisboa e o sinistro semi-directo. Uma jornada a principiar em Campanhã, as tremuras da Ponte D. Maria; e depois Gaia-Espinho-Ovar-Estarreja-Aveiro-Pampilhosa-Coimbra-Alfarelos-Pombal-Entroncamento-Santarém-Vila Franca de Xira-Santa Apolónia, no limite do cansaço. Com vagar para ler e reler a sebenta, que o exame era amanhã...

(O regresso, desobrigado de pontualidade, processava-se à boleia. E uma querida tia, estrategicamente residente em Coimbra, sempre acolhedora, oferecia-nos o Centro, se o Norte não fosse empreitada de um dia só.)

Era assim. Animadamente assim. Uma maçada tão tranquila quão absurda, vista com os óculos da actualidade. Mas a ela sucederam, porquê não sei, quase três décadas destituidas de comboios.

O Alfa neste milénio. Um corredor para a Capital e mais longe. (Ressalvando os descarrilamentos, as frequentes avarias e as pessoas por quem passa por cima.) Confortável, rápido, moderno e musicado, provido de ar condicionado. Portugal, entretanto, matara os velhos ramais e enchera-se de cabos eléctricos, só complicando o livre trânsito dos nossos circuitos neurónicos. Talvez pela indução do sono, talvez pelo facilitismo. Em morte fatal do pensamento, com os interfaces encruzilhados em precipitações e asneiras. Os falsos chamarizes não são modo de vida, somente uma rota descarada para o arrependimento, ainda por cima sem arvoredo nem flores que se enxerguem...

Assim trocámos os cachos de uvas pela comodidade. Trocámos também as vilórias pelas florestas de betão. E o recato pelo correrio esbaforido. Os serões de namorico (com umas beijocas quase ainda requeridas em papel selado...) pelo encontro fortuito. Em suma, a genuinidade, a pureza e a simplicidade por um planeta imenso e anónimo.

Onde se sumiu o ruído e o espalhafato dos velhos comboios. E emergiu o rumor insistente e demolidor da multidão - o mais desumanizado ajuntamento de humanos. Por isso as relações entre semelhantes conseguem ultrapassar em fugacidade o Alfa magnífico e de poucas palavras.

 

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