Sufrágio da Santa Fé
Em determinada esquina da Marginal vilacondense ficava a Casa da Santa Fé, de cara voltada aos mares. Na traseira, com entrada por um portão, o seu jardim de carreiros apertadinhos. Há quantos anos! E em Setembro, o mais pacífico mês de praia, ali decorriam tronitroantes corridas de bicicletas, era o nosso circuito, o circuito dos sobrantes em férias, algumas dezenas ainda.
Por isso as provas eram renhidamente disputadas, numa largada global que incluía todas as classes e idades velocipédicas. Em boa verdade, as duas únicas máquinas de 26 cc (circular centrífuga) eram a minha, preta, sem modificações, e a do falecido Comendador, verde e dotada de avanços. (Uma fera ciclística, o falecido Comendador...) E, geralmente, o vencedor, um de nós dois, seria o de melhor arranque, porque o espaço para ultrapassar escasseava em todo o perímetro.
Como referi, os concorrentes eram mais do que muitos, e nunca esquecerei o carola Ratazana, com a sua 12 cc. Sem excepções, o último da "Geral" e sempre o primeiro - e o único - da sua categoria. Nós, os anciãos de Vila do Conde, todos o conhecemos e temos presente a esponja a proteger o guiador da sua bem preparada machine, as luvas, o fato-de-macaco negro e o capacete com óculos de protecção. Um genuíno motard de inauditas aventuras!
(E, por isso aqui não divulgo o seu nome, o actual nome de um galhardo e ilustre chefe de família, esse Ratazana de outrora.)
Assim corriam (e se despistavam) as bélicas velocidades da nossa juventude, nos idos da Santa Fé. Confesso, adentro da casa, achalezada, nunca entrei. Lembro-a de idade solene, a varanda envidraçada de cara para a praia; e uma certa inveja minha, porque Setembro ia avançado, em sossego, os dias decresciam; e nesse espaço não faltariam o chá, os scones ou biscoitos (nem me ocorria a cerveja...), aquele relógio de parede - tac-tac, tac-tac, tac-tac - soando grave horas paradas no Tempo.
Depois foi o galope inevitável que hoje sentimos todos no corpo já cansado. A Santa Fé deu as voltas que o Destino quis, caiu de cangalhas, ergueu-se giraça mas jamais a mesma, o jardim nosso circuito varreu-se do mapa, há tristezas tão difíceis e, de toda esta história, ficou somente o lugar. E o Ratazana, para escrever rigorosamente.