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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

O Hotel da Penha

João-Afonso Machado, 23.12.22

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Quem conhece Guimarães não se engana no caminho. O morro é grande, o teleférico não está quieto e no topo o santuário pica o céu e o Hotel da Penha mora um nada abaixo. É assim desde 1905, com longas filas de apreciadores da boa comida sempre a escalar as suas encostas.

Lá fomos, sequer nos ocorrendo reservar lugar nesta época de almoços de empresas e famílias. Um sábado... - é claro, de casa cheia! Irritante e barulhentamente cheia. E agora?

Valeram-nos os préstimos, a boa vontade do Sr. Helder Lopes, o gerente, e o improviso de uma salinha com mesa para dois. Ir ao Hotel da Penha significa saborear filetes de pescada com salada russa (ou arroz branco, em alternativa) porque não há no planeta outros assim.

Eu e a Luísa abancámos então à mesa. O serviço podia ser demorado, razão pela qual vieram à frente umas chamuças e uma garrafa de Quinta d'Ourega, o verde branco da casa. Boa pinga, bem tratada da ancestral acidez dos vinhos da região.

O pessoal atenciosíssimo. O responsável pela cozinha, Mestre Carlos Gouveia, também compareceu a saber de nós. Leva 30 anos de profissão iniciada na Armada portuguesa, onde laborou para centenares de marinheiros do Alfeite. O Sr. Gouveia é um misto de minhoto vimaranense e de coimbrão, mais identificado com aquela (esta) terra dos meus antepassados paternos.

Revi-os, os meus antepassados, em volta do castelo e do Paço Ducal. Revi toda a gente de Guimarães a que estou ligado, os seus passeios de sempre ao alto da Penha. E, contas feitas, os filetes afinal nada demoraram.

Não sou muito de adjectivos em apreciações culinárias... - Que tal Luisinha? - Óptimos!...

Estavam. Como sempre, desde sempre. Aquilo é manteiga de peixe a desfazer-se-nos na boca. E a salada russa cavalgava ao lado, no mesmo bem lançado ritmo. Com a gente da casa sempre ocorrendo, a inquirir se faltaria algo.

Não faltou. Trouxe comigo o penhorado agradecimento pelo atencioso serviço a meu pedido improvisado. Porque quando chegámos, eram já muitas dezenas de comensais lançados em idêntica voragem.

E rematei à boa maneira minhota com um leite-creme tostado pelo ferro quente no açúcar cimeiro. Os passeios dos meus, que Deus tem, só devem prosseguir connosco até tão acolhedor restaurante. Obrigadíssimo, Hotel da Penha!

 

O Pote

João-Afonso Machado, 23.11.22

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Foi o Espírito Santo. Foi na sua igreja, o actual Museu do Barroco dos Arcos de Valdevez, que a simpática e bonita funcionária recomendou O Pote para almoçar, e indicou como lá chegar. À Rua Amorim Soares.

Muito bem localizado, tranquilo, nas imediações da Misericórdia, um belo templo barroco. Entrei, sentei - amesendei, como ora se diz - em espaço amplo e decorado com simplicidade. Eis que surge a Jainny, menina brasileira atenciosissíma. A escolha, por sugestão sua, recaiu no pernil de porco fumado. Tenro e saboroso, com quase nada de salgado e acompanhado de esplêndidas batatinhas fritas às rodelas e salada de alface e tomate. Só porque era dia de muito andar e não convinham violências gastronómicas, ainda guloso deste abençoado pernil não pedi mais.

Pedi sim, para experimentar, e bebi um copo do tinto da Adega Cooperativa de Ponte da Barca e dos Arcos de Valdevez, a pinga da casa. Nada mau, 10,5º, fresquinho e destituído de acidez.

Depois tratei com o Sr. Pedro Martins, o prestável e dedicado anfitreão, um leite-creme, desses como só no Minho, encrostado em açucar queimado. O bom amigo acrescentou-lhe um pratinho de castanhas assadas (era S. Martinho) e um cálice do seu licor de limão e aguardente de vinho verde. Uma maravilha que encurta a digestão para alguns dez minutos.

Prossegui a minha vida, depois de efusivamente me despedir do pessoal da casa. E para todos o conselho final: indo aos Arcos vão a um almoço ou jantar n'O Pote.

 

A Taberna Afonso

João-Afonso Machado, 19.10.22

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Vindo de Barcelos pela estrada antiga, fica na primeira freguesia do concelho de Ponte de Lima - Poiares. Não tem que enganar, a referência é a quase irmanada capela de S. Roque e o seu púlpito pétreo, voltado para o exterior e apropriado a sublimes sermões pós-almoço. Tão mais apropriado quanto é certo estarmos na capital do bacalhau assado na brasa.

A Taberna Afonso nasceu em 1997. Não disponho de feições suas dessa pueril fase. Há meia dúzia de anos lá fui ao fiel amigo e ainda o estabelecimento se pautava por alguma ingenuidade, - digamos assim - conquanto o petisco já fosse ao rubro procurado. O resultado era então o malfadado condimento de um almoço - a barulheira. (Se calhar, por isso, acabámos perorando aos deuses, um punhado de nós, no púlpito da capela de S. Roque.)

Desta feita, o grupo dos jovens famalicenses que se reune no Café S. Paulo deparou com mais amplas e sofisticadas instalações, uma sala quase só para si. A pesca, necessariamente, era a mesma.

As paredes da Taberna tinham petrificado nuas e a mesa comporta onze comensais com o maior conforto. O bacalhau parece um tubarão lascado, sem espinhas, coberto de cebola e grelos. Em prato à margem, a batatinha cozida. E tanto aparato quanto sossego, vagamente perturbado pela escolha dos vinhos, a discussão do costume.

Há-os amantes do maduro E do verde branco, o meu partido, o que melhor rega esse peixe salgado sem o ser, bem temperado como só na Taberna Afonso. In casu, escolhido o da casa, um monocasta (loureiro), muito afrutado, a registar 12,5º, não sei se com exactidão... (Em Poiares, assim graduado, produzido na freguesia, pois só lhes tiro o chapéu, aos solos e ao bom sol...)

Quanto ao serviço, não podíamos almejar mais, tratados por «filhos», maternalmente, servidos no prato e no copo, com fotografias intermediadas e pudim do Abade de Priscos e café para quem o bebe... Contas feitas, o destaque para o satisfatório e acessível preço.

A conversa foi-se deixando ficar. Depois, as despedidas e os devidos agradecimentos. De Poiares a Barcelos uns instantâneos 9 km e, até Famalicão, o breve trajecto de todos os elogios pensáveis - bacalhau assado, salgado como não o é... - à Taberna Afonso. Com todas as glórias devidas à coincidência de nomes - o daquele santuário e o deste pobre desconhecido. 

 

O Praça Velha

João-Afonso Machado, 25.08.22

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Abriu muito caladinho em 2009, na Praça Antero do Quental, do lado mais resistente e genuíno de Vila do Conde. Nem sei mesmo se foi assim festejado, ninguém me falou nele e descobri-o por mero acaso quando, de viela em viela, tentava fugir ao trânsito das ruas principais: - "Praça Velha", lia-se em placa aposta em edifício antigo de bom aspecto. Nesse mesmo dia fui lá almoçar.

Logo com o benefício da amável recepção pelo Sr. Tiago. Escolhi um lugar na esplanada quase sem gente (os restaurantes quase sem gente são sempre os melhores do mundo) e verifiquei a qualidade das toalhas e guardanapos, tudo em tecido. Confortavelmente instalado, protegido de eventuais hostilidades por uma barreira acrílica escondida entre buxos e ameixoeiras bravas, pedi enfim ao Sr. Tiago fizesse as apresentações.

Para então, as honras iam todas para o cabrito e a vitela assados, como ambos escolhi. Sublimes, acompanhados de batata (também assada) e grelos. À laia de "volta cá" fui informado ainda que o Praça Velha serve predominantemente pratos regionais e está aberto o ano todo.

De modo que o almoço espreguiçou-se pela tarde adiante.

A lista de vinhos, composta de muita literatura, incluia um D. Ermelinda branco, de Palmela, e foi a sua leveza que eu saboreei sem pressas, sentido o cabrito e a vitela a nadar nele e o perfeito leite-creme queimado da sobremesa a diluir-se como um remédio de antigamente.

Não apetecia vir embora, deixar o esconderijo sob os descorados papelotes que ficaram no Largo desde o último S. João. Fora tudo bom e barato, não tarda lá me apanharão outra vez.

 

O Tempo

João-Afonso Machado, 06.08.22

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A capital do meu distrito não é uma cidade fácil, troca-nos as voltas de um mundo antigo rodeado de monstros implacáveis e actuais. Enfim, os turistas - que são aos magotes agora - gostam, passeiam e, verdade se diga, alcançar o restaurante Tempo não será milagre de S. Frei Bartolomeu dos Mártires. Na via para a Falperra, a páginas tantas, a Quinta da Capela, onde outrora funcionou outra casa de repastos assim chamada... É lá!

E foi o meu baptismo no Tempo. Uma entrada agradável, sombreada por um toldo debaixo do qual vai fabricando umas folhitas uma oliveira posta em vaso de madeira; e um interior fresco e aconchegante, com cadeiras muito confortáveis nesse espaço amplo e não repleto. Integrava um grupo de amigos com mesa reservada num canto e o serviço foi apenas um pouco demorado.

Valeu a pena, todavia. E escolha fora antecipadamente feita e a comunidade saciou-se com um misto de carnes grelhadas guarnecido com umas batatas fritas comme il faut (palitos secos, fininhos) e arroz de feijão a ajudar. Melhor explicitando, uma generosa variedade de carnes, não faltando sequer o salsichão, tudo de excelente qualidade e preparação (ou confecção, com esta tropa agora diz). Já na questão da sua rega, definindo-se as hostes do tinto e do branco, alinhei por esta visto o duriense Diálogo ser da Niepoort e isso me bastar. E o vinho revelou-se, realmente, muito equilibrado e aromático, sempre disponível para vir à mesa. Braga ardia penosamente sob o brasume da última vaga de sol e tornou-se necessário pedir ao bombeiro de serviço água, muita água, ainda mais água.

E sim, o funcionário era deveras atencioso e as suas colegas duas minhotas como é um regalo olhá-las, bonitas e bem postas e dispostas.

Tudo findou com duas opções de sobremesa vindas ao bródio - uma tábua de fruta já cortada (kiwi, laranja e abacaxi) e pão-de-ló mole. Não consegui evitar cair na tentação e fui vítima (reincidente) desta última bomba calórica.

O almoço, bem conversado e animado, acabou tarde e ainda nos esperavam umas voltas por Braga, agora já não tão escaldante. Partimos com a consciência de que podemos voltar.

 

O Porta-Enxerto

João-Afonso Machado, 14.07.22

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Nos fnais de 2016, quando ali passei, fiquei surpreso com o estabelecimento: na fachada do Mercado Municipal de Famalicão, ocupando o espaço tantas décadas de uma drogaria em que, uma vez ou outra, comprava qualquer coisinha... Entrei, inteirei-me do que se tratava, tomei um copinho de branco e desandei, não augurando generoso futuro àquela aventura.

O Porta-Enxerto definia-se com um wine-restaurant-bar, tinha o seu horário de almoços, a tarde à disposição para uma bebida e um aperitivo e, à noite, abria às sextas, sábados e vésperas de feriados, com bocadillos e tapas. Fora isto, só por encomenda...

Correu meia dúzia de anos e, contrariando essas minhas reservas, o Porta-Enxerto traduziu-se no maior êxito. Os almoços, constituidos basicamente por um prato único (embora haja escolha alternativa), são dotados de uma imaginação prodigiosa e todos os dias surpreendente. Neles apenas os fritos não constam do cardápio. E a refeição global inclui a sopa de legumes, a prova de azeite, a sempre variada salada (alface, agrião, rúcula, massas, frutos secos...) e o prato principal, com a sobremesa a rematar. Os vinhos - a copo ou a garrafa - relevam como contas àparte.

Porque esta é uma casa de míriades de marcas vinícolas e preciosas. Nacionais e, grosso modo, europeias até longe. O espaço é reduzido e povoado de uma música repousante que tanto ajuda ao propício silêncio para uma conversa calma e bem mastigada.

Na imensa oferta nocturna tenho vindo a preferir as tapas, nas suas profícuas combinações de alheira, tortillas e salmão fumado. Já ao almoço confio sempre na surpresa, como - por exemplo -  o estufado de novilho com frango, feijão verde e cenoura... Nesse dia regado com um branco Lagar de Pias, vinho simples, servido muito fresco e a condizer com o adequado equilíbrio orçamental.

Mais acrescento o louvor à "torta de laranja" caseira. E a simpatia do Sr. Hermenegildo Campos, o proprietário, um homem de vistas largas na gastronomia e na política - ou não fosse ele um convicto monárquico à espera (como eu) do amanhã de Portugal.

Fica na famalicense Rua Capitão Manuel Carvalho este restaurante que, com a sua esplanada, a ninguém passará despercebido.

 

O Morfeu

João-Afonso Machado, 30.06.22

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Em tempos que já lá vão, almocei frequentemente no Porto com uma querida amiga num apagado restaurante que por acaso descobri, sem placa, quase sem janelas, algures nas cercanias das Condominhas. De maçicas portadas de madeira e dois perigosos degraus para baixo, porém com mesa posta com toalhas e guardanapos de pano. E logo lhe tomámos o gosto, visto cozinhar o melhor rosbife da cidade toda. Era o Morfeu.

A minha amiga - uma insaciável carnivora - nunca mais quis outra coisa. Em matéria da pinga, havia sempre alguma novidade nos tintos durienses. Para obstar a esperas, eu fazia então o meu telefonema matinal à Maria Jorge, a proprietária, - Hoje estamos aí à uma da tarde para o rosbife... - Restava somente chegar, sentar à mesa e assistir à corrida da travessa vinda da cozinha, carregada de carne e batatinhas fritas. Enfim, eramos felizes.

Ainda conduzi outros amigos ao altar da Maria Jorge. Mais clientela habitual, muita gente ligada ao Vinho do Porto. A fama batia, assim, à porta do Morfeu.

E com um vigor tal, o restaurante desceu ao rio, modernizou-se, todo penteado, e botou esplanada na Marginal, na Rua do Ouro, a Massarelos. Já nessa altura a Maria Jorge nos preparava os pratos para os quais fornecíamos a matéria-prima: a lampreia, a lebre, o faisão, o javali, e vinhos da safra de alguns.

Jantei outra vez no Morfeu no transacto dia 23. (Somente o aniversário de mais uma grande amiga, um número redondo, simbólico, me levaria ao Porto na noitada de S. João! Foi na dita esplanada, em mesa de muitas décadas de "irmandade".) Além das variadas e excelentes entradas, em sintonia com o festejo popular uma sardinha assada - uma só por bico - acompanhada de pimentos, decerto a poção que lhe enrijecia a carne e a despia de outras espinhas além da dorsal. Uma delícia! E o melhor estava para chegar - o cabritinho!

Cabritinho porque filho querido do saber culinário da casa. Assadinho no forne, com batatinha, arrozinho e grelinhos. Tenrinho, carnudinho, a desfazer-se-me na boca. Muito bem temperado, perfumado de louro, de quantos mais condimentos. E escoltado à retaguarda por morangos e um fabuloso bolo de chocolate.

Quanto aos liquidos, mantive sempre a minha fidelidade ao Parceria branco, um vinho do Douro bem apaladado, discreto o bastante em teor alcoólico, muito leve e fresquíssimo, o ideal para se beber à noite.

Restava o apertado abraço aos comparsas, à despedida, e um adeus à Maria Jorge, como todos nós mais pesadota e insistindo em tratar-me por "Dr.", a mim, o velho Machado.