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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Até Andorra por estrada

João-Afonso Machado, 01.12.22

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Foi há muitos anos, numas férias da Páscoa. Com partida de Lisboa, em dois automóveis, atravessámos a Peninsula no seu estado mais adiantado de gravidez. Corremos a Estremadura espanhola, passámos ao largo de Madrid, já em Castilla la Mancha, Aragão, um cheirinho de Catalunha e Pirinéus. Então o frio caiu sobre nós de repente, nevava entretanto, eramos chegados a Andorra, enfim.

A maioria organizou-se para esquiar. Para não fazer outra coisa além de esquiar. Eu experimentei também, mas não me entusiasmei. Chamavam-me mais a paisagem e os passeios a pé, o pão com chouriço do restaurante italiano e o seu vinho a copo.

Como ainda passaríamos as festividades pascais no Norte, regressámos por Navarra, Castilla Leon, Sanábria e entramos triunfalmente na Pátria querida por Chaves. Depois foi sempre a descer... mesmo a tempo de não perder as cerimónias religiosas na nossa freguesia.

Nunca antes guiara tantas centenas de quilómetros seguidas, em sofríveis auto-estradas. E no miolo espanhol prepondera a monotonia do planalto empedrado. Horas e horas de marcha sempre igual. As distâncias são muito maiores do que cá: qualquer tabuleta aponta a próxima cidade importante e acrescenta à frente duzentos ou trezentos deles, ou seja, de litros e litros de combustível. Foi sair de manhãzinha e chegar à noite.

Se valeu a pena? Claro que valeu. Mesmo porque, de então para cá, tenho enchido de betume esse esqueleto cuja espinha dorsal percorri ao volante. Ainda agora assim será, mas de avião, quem me diz não esteja já no ar neste momento?

 

Meditação (à moda antiga)

João-Afonso Machado, 28.10.22

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Em boa verdade, sinto muito a falta de quem me ensinou a voz do silêncio. Desse vulto desaparecido, dessa vida que vive algures e terá tanto em que se ocupar.

Luís Cardoso de Menezes, meu parente, colectou os seus poemas em  Meu Silêncio de Palavras onde residirá alguma resposta mais a nós mesmos.

Silêncio feito de luta/silêncio feito de espanto/palavras pra quem não escuta».)

Nada é dito por acaso. E nem sequer a luz da vela é um pensamento errante. Para onde caminho, eu, desprovido de primeiras pessoas do plural? É no que penso e repenso. Agora mesmo, na frescura de uma curva qualquer onde se pode ser feliz.

 

Vila do Conde

João-Afonso Machado, 22.07.22

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Mas se não ponho o bridão à boca ainda sai um livro todo... As recordações de Vila do Conde são isso - são os tempos do tractor que levava a tralha e as galinhas para um trimestre quase inteiro onde não havia supermercados; do leite vendido porta-a-porta, manhã cedinho, e as medidas da família - quartilho e meio - a sair da bilha logo então; são as peixeiras, a canastra descida da rosca na cabeça, e a ciência da Avó a negociar o preço do goraz, do capatão, do robalo...; e as manhãs desertas, cinzentas, a ronca da Póvoa invisivel a uivar longe, depois da cortina do nevoeiro.

De seguida, as bicicletas. O mundo era nosso, corrido nos passeios, quase repimpando na barriga do sargento do posto local da GNR. Complacentemente...

Eram as ruas todas por conta das tantas gerações que congregavam o bairro balnear.

E a praia, as barracas como casario vizinho e amigo. O banheiro Baltazar, um vigilante que tranquilizava os nossos pais. E a Sra. Ana dos bolos...

Tudo já pertence ao passado. Vila do Conde morreu para os que a distinguiram a única que foi. Por ela restam alguns fantasmas apenas.

Sou um deles. (Dos mais inofensivos...) Onde antigamente os carpinteiros serravam e aplainavam o madeirame das traineiras, eu e os velhotes sobrantes matamos saudades e celebramos estranhos rituais de eternização em almoços de peixinho bem regado.

 

Salamanca

João-Afonso Machado, 16.06.22

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Para nunca mais, creio. Para nunca mais tão apetecida cidade e os seus longínquos foros universitários. Aconteceu não há muito tempo, a expedição planeada até Málaga e o terror repentino, logo no primeiro dia, por razões (não importa quais) a suster-me o peito como balas de calibre superior. Nunca mais!

Nada pior do que a paz fugindo buraco abaixo e a danação a tomar conta de um espírito apenas voraz de sossego e palavras tranquilas... Aconteceu!

O retorno, por Vilar Formoso, a A5 toda, foi o alívio possível. A deixar morrer memórias ilustradas de Salamanca à noite, a sua beleza, uma momentânea Salamanca depois guardada a sete chaves deitadas fora. Comigo, apenas a fantasmagoria da alva senhora tão triste quanto eu. É ela Salamanca.

Hoje mesmo estarei em viagem por Leon-Castilla. Mas em rodoviário voo rasante, ao largo, virando a cara para a banda oposta. O destino é a norte, muito a norte, quase nas águas marinhas da Biscaia - Salamanca, nunca mais!

 

Souselas

João-Afonso Machado, 04.05.22

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A menina Delgado, descendo a rampa da estação, atravessava o Largo da Igreja e percorria a rua principal até sua casa, no outro extremo da aldeia. Vinha do emprego em Coimbra, irradiando as suas hot pants muito no cimo das longas e bem lançadas pernas, sempre em ligeirinho andar. Souselas espreitava-a, algo sedenta, por trás das cortinas silenciosas. Ainda não eram as vésperas da Revolução de Abril.

O Centro Desportivo Recreativo Popular de Souselas militava na II Divisão do distrito conimbricense e equipava à Sporting. O seu ponta-de-lança, alto e desenvolto, de vasta cabeleira, era o Mário, irmão da menina Delgado. O Yazalde, mas com o inoportuno senão de não acertar uma, nem uma, bola.

Jogava-se muito os matraquihos e exagerava-se nos cálices de ginginha, a crua realidade dos canivetes e das telefonias prometidos nos mostruários dos "furos". Aos fins de semana havia teatro ou cinema ou mesmo baile no Grupo Desportivo Recreativo Popular de Souselas. Os galãs locais aperaltavam-se: o Raul evidenciava os bíceps; o Heitor enfiava a calça de bombazine castanha, o pull over amarelo e as meias a condizer, mais o pente no bolso traseiro, sempre com a poupa em manutenção. Para os netos do Senhor Eng. - para nós - a entrada era gratuita.

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Mas as pequenas do nosso patamar etário dançavam entre si, à mingua de licença paternal para contracenar com os moços. E o conjunto tocava suspeitíssimas versões do Souvenir of London dos Procol Harum, além do romântico nacional da época. O Mário Delgado, o Raul, o Heitor e os outros fartavam-se de namorar. Connosco não havia o perigo de noitadas exageradas, até porque para amanhã ficara já apalavrada uma incursão no carro de bois do Sr. António até Brasfemes.

Eram assim os Setembros da II República. Assim e com o rio Botão ainda limpinho, cheio de peixe.

 

Desafio 52 semanas -17|Valência

João-Afonso Machado, 25.04.22

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Vão lá precisamente cinco anos a doença vencia-te por fim. Foi muito duro, duríssimo, não obstante o alívio de te saber não sofrendo já. E porque tudo o mais é coisa nossa, sempre poderei repisar apenas exterioridades, passeios. Valência, em 2014, na Ryanair com o meu cartão de cidadão caducado e a aquisição dos bilhetes, o check in, tudo aldrabado na sua data. Faltava só o embarque e o teu pânico era absoluto. - Deixa estar, filha, a gente não falha a viagem. Sossega!

E não falhámos. A menina do aeroporto não deu conta, não leu o CC. Estávamos (entalados) dentro do avião e já quase em Valência, sem mais peias.

Cidade magnífica. Cheia de Passado, repleta de criatividade e vida. Foi um dia para lá e para cá no leito seco do rio Turia. Doze quilómetros a pé naquela animação de sábado primaveril. E o Bioparque, o Oceanário, gerações de pontes das vetustas às mais vanguardistas, os sucessivos espaços temáticos...

Admiraste principalmente o Palau de les Arts, a sua impensável arquitectura, tão inéditas formas, náutica elevação em pino, em cambalhota, onde o extinto rio Turia só a podia deixar encalhada. Pois, era uma predilecção que bem te conhecia, o teu trajecto para a pintura que primorosamente executavas.

E eu fiquei à vontade brincando aos fotógrafos. Sem uma palavra, diziamos tudo um ao outro.

No regresso a Portugal, a mesma ansiedade com a data do meu CC. Realmente, desta feita, apanharam-me... Mas para que me queriam lá os valencianos? Fui devolvido à Pátria, que embarcasse e tratasse da minha vida.

Corremos, antes e depois, outros bocados do mundo. Tenho-os todos no meu coração, mesmo ao lado da enorme presença que és (e sempre serás) tu.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

 

Desafio 52 semanas -14|Sem elencar

João-Afonso Machado, 04.04.22

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Não sei se serão oito factos, se mais, se menos: tenho dificuldade em responder numeradamente a questionários e a minha escrita só se obriga aos pés do meu sentir. Mas esses dias são inesquecíveis, vão lá quatro anos e o sofrimento do Pai, nesta vida cá em baixo, terminara há muito pouco tempo, após longa doença e tanta idade.

O repto veio de um meu cunhado e de um sobrinho - Vamos a Londres ouvir o Eric Clapton?

Fomos, claro. A capital britânica vivia momentos extraordinários de condições meteorológicas e de animação. Um céu miraculosamente azul, temperaturas além dos 30º, os londrinos praiando nos parques e nos seus lagos. Festejava-se o centenário da Royal Air Force e houve espectáculo sobrevoando Buckingam.

Uma multidão rodeava o palácio com as suas Union Jack até Saint James Park. Na varanda maior compareceu em peso a Família Real e a minha lente apanhou-a em cheio, repetidamente, preciosidade que guardo em cofres diversos das minhas fotografias e da minha alma. Entre os destacamentos policiais, uma agente que era um anjo - por azar indiferente aos muitos sinais de pisca-pisca que lhe enviei com os olhos. E o firmamento povoado de caças Spitfire, de bombardeiros Vickers e Lancaster, de outros muitos de maior contemporaneidade.

Depois a animação em Picadilly Circus, onde muito me honrei beijando a mão de Your Magesty the Queen Elizabeth I, de resto um pouco trapalhona, apoiada num guarda-chuva fabricado na China. Decorria o Mundial de Futebol, almoçámos num bar ao tempo em que a Inglaterra vencia a Hungria. E também nós perdemos, mas na contagem dos pints emborcados, face ao entusiasmo dos indígenas que assistiam ao prélio pela televisão.

Finalmente, o festival. Steve Winwood, Carlos Santana e o astro Clapton. Comentava-se, no seu derradeiro concerto. O palco no centro da vastidão do Hyde Park, Santana irrepreensivel. Black Magic Woman, Oye Como Va, Samba Pa Ti...  e para aquela gente toda, uma, duas, três gerações aos pulos. E quando da vez de Eric Clapton, o mundo quase veio os rebolões! A minha lente ainda o fisgou, mas pequenino, valeu-nos o ecran gigante e aquela inenarrável sucessão - Layla, After Midnigth, Tears For HeavenWonderfull Tonight (que embalo!)... e, a fechar, - Cocaine! O delírio!

Curtimos. É isso, - «foi uma curtição»! Aqui a dos velhotes, viajantes no espaço e no tempo até aos nunca perdidos Anos 70.

 

(Desafios da Abelha - https://rainyday.blogs.sapo.pt/52-semanas-de-2022-introducao-392169)

 

Montalegre

João-Afonso Machado, 23.03.22

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Da última vez era ainda inverno e um desfile de samarras no frio. A minha, a mais vistosa gola de raposa nas redondezas. Talvez nevasse. Mas o calor que emanava do Feira do Fumeiro aquecia Montalegre e as muitas almas visitantes. Essa macacada do lítio não se sonhava sequer então.

Terra robusta de gente dura e bem dona dela. E livre, independente, quanto também anfitreã de primeira água. É o que tenciono reviver brevemente, já em maré primaveril, buscando pelo olfacto o filão de uma senhora posta de vitela barrosã. 

 

Verín

João-Afonso Machado, 22.01.22

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Uma localidade residente no meu coração, Verín, os anais do bivaque das derradeiras tropas d'El-Rei. Notícias que se entrechocam, esperanças e frustrações, coragem e espionagem. Houve de tudo nesses meses em que a  Bandeira não se quis derribada, houve essencialmente a crença em amanhã. 

Verín não é um percurso inalcançável. É já o Tamega a caminho de Portugal navegado por memórias e nacos de História. Mesmo nos dias mais carnavalescos de uma população toda na rua em centenas de disfarces, como num disfarce só os soldados da Bandeira ansiavam por ordens para marchar.

Vale dizer: Verín tem de ser uma estadia de morosidade, de meticulosa reconstituição daquilo que há mais de um século lá se viveu. Decerto não faltará a literatura nem lugares de romagem. Nem mesmo o testemunho transmitido nas gerações de nuestros hermanos...

 

Ticino

João-Afonso Machado, 15.11.21

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São tempos que vão e vêm na galera das asas. Em frio intenso e imagens geladas na memória. Em tudo, o percurso desde o razoável ao humanamente menos recomendável. Estradas longas, imagens eternas... Porque o mundo é tudo, é cada vez mais, um abismo, somos nós e a nossa satisfeita insatisfação. 

Como navegamos a incerteza! Como velejámos a beleza!  As neves dos cumes e as aves de rapina ao de perto. Bermas arborizadas. O planeta aquece, o verbo "ir" chegou ao pretérito perfeito, a bussola indica o norte, o trilho da fuga.

Sejamos obedientemente compradores de tal purga. Já vivi ao lado desse refúgio e sonho sempre com ele. Quero-o de volta, o planeta é maneta e, por este andar, cá pra baixo, ficamos todos pernetas. Assim o diz a prudente Conferedação Helvética...