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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 26.10.22

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E como difere Santa Apolónia dos meus velhos tempos num quartinho no Campo das Cebolas! Mudou de cores, engoliu um hotel e parece um comício de trotinetes sob o qual jazerá o saudoso Sud!

Cá fora, os velhos estabelecimentos das sandes de chourição e meia garrafa de tinto consta foi bruxedo que lhes lançou mãe-de-santo, baiana de orixá. O português de Portugal já pouco se ouve e se as casas de comida triplicaram, a clientela decuplicou. Não é bom ter fome em Santa Apolónia...

Enfim, após espera paciente, banqueteava-me com uns carapauzinhos de escabeche quando surgiu - tinhamos combinado encontro - a única inofensiva trotinete lisboeta. A dela, a da minha amiga, anunciando-se à distância com o tilintar das pulseiras, a cabeleira loira como farois de nevoeiro. Acenei-lhe, abri os braços. E ela poisou como uma gaivota raríssima, a única talvez a torcer o bico aos carapauzinhos de escabeche.

Quase me senti na obrigação moral de lavar os dentes. Mas a minha amiga, muito senhora, é óbvio não fez qualquer reparo. Empurrou a trotinete para um canto, cumprimentou efusivamente e sentou-se à mesa, informando nada querer porque estava uma «lontra». Foi o início de uma agradável demorada conversa a certa altura derivando para as cidades flutuantes - verdadeiras Porcalhota quando já invadida pela propriedade horizontal - que atracavam no vizinho Cais do Tabaco.

Discorreu-se muito. A páginas tantas ouvimos um roncar roufenho a assinalar uma partida e assistimos à manobra. Consabidamente, eu gostaria de experimentar um cruzeiro. Li até algo sobre uns programas para lugares simpáticos como a Irlanda. E num impulso incontrolável desafiei - E se fossemos os dois...

Não consegui concluir a proposta. Em um salto, parecendo ofendida, ergueu-se da cadeira e cavalgou uma tilintante trotinete loira e despeitada. Outra, não essa em que chegara...

Ainda que me falhasse o orgulho dos minhotos, sempre careceria de know how (estamos na Capital...) para agarrar uma montada daquelas e seguir no seu encalço. Só para esclarecer: cada um no seu camarote, minha amiga!

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 01.10.22

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Jamais sentira Lisboa tão mortiça em princípio do Outono. A Avenida das Forças Armadas parecia ter desertado e lá em baixo, em Entrecampos, a órbita automóvel era nenhuma. Um ar plácido, sonolento, estimulava os meus vagares de uma tarde toda não sei para quê.

Foi quando ela, a minha loira amiga, se ouviu tilintar das pulseiras. Eufórica, ao arrepio da Capital inteira. E, conforme explicou enquanto me arrastava para uma esplanada, recém-chegada de Londres onde, logo adiantou, se deslocara propositadamente para assistir «aos funerais da falecida» Isabel II.

Estrebuchei já contrariado. Entre nós não há funerais, há enterros ou, vá lá, cerimónias funebres; e as pessoas não falecem - morrem. Mas o que entenderia a minha amiga dos hábitos dos morgados minhotos? Ou da nossa gentry, para usar a designação britânica?

Enfim, lá me conseguiu sentar e pedir uma águas melancólicas, sem verbo. Este vinha todo, torrencialmente, do seu acervo de novidades sobre as exéquias contadas ao pormenor, com um milhão de turistas testemunhando os dois dedos que Carlos III lhe estendeu.

Eu nem a televisão ligara esse dia. Nada acompanhei. A gente nasceu monárquica e monárquica há de ser sepultada. Pela Rainha inglesa... nem ao 7º dia poderia comparecer, porque os anglicanos não celebram missas de sufrágio. Ocorreu-me um dos primeiros milagres de Cristo - Lázaro, levanta-te e caminha! - aplicado à até então ausência de monarquismo da minha amiga. Trajava ainda cores escuras, com uma fita vermelha, azul e branca no pulso. Mesmo o chocalhar das pulseiras perdera metal...

Suspirei profundamente. Gosto das paradas em Buckingham, gosto do Changing of Guards, do Hyde Park e do Speakers Corner, dos esquilos, de Picadilly Circus, do Tamisa... e até já sorvi os mais asquerosos pivetes atravessando o Soho. Mas sou um viajante e não um turista, muito menos um turista funerário. De modo que, farto de marchas e solenidades militares, dos arções onde seguia a urna real, lancei a ideia - Então e se planeássemos uma visitinha ao Eire?

- Credo, não, isso é uma república!

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 01.06.22

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Se há algo que em Lisboa contribui para o meu bem-estar é o Bairro de Alvalade. Despretensioso, sem pergaminhos embolorados nem conhecidos que se nos atrelam com historietas de antanho, o Bairro de Alvalade é luz e, mesmo na sua parcela mais comercial, é familiar, bem abastecido, jovial e muito limpinho nas cores dos seus prédios. Gosto daquelas varandas e janelas, da encruzilhada de ruas, das lojinhas de todos os tipos e dos muitos e bons restaurantes.

Não subsistia, por isso, qualquer óbice a que a minha amiga viesse lá das bandas da Estrela almoçar comigo a Alvalade. Mas notei-lhe uma certa contrariedade ao telefone, estranhei bastante e doí-me, embora acabássemos marcando local de encontro e hora para o dia seguinte.

E sempre a topei ao longe, ligeiramente atrasada e muito murcha. Caso único, talvez, não a distingui pelo tilintar das pulseiras. Também elas pareciam comungar do seu lutuoso silêncio. Outrossim o cabelo espigara, tornara-se loiro puído, envelhecido. Preguei a minha amiga sentada à mesa, antes que fugisse ou desfalecesse.

Ia balbuciar uns dizeres sobre a varíola dos macacos quando, após um relance de olhos pela sala, entrou a empalidecer, emudeceu, via-se que absolutamente tomada de medo pânico. E ali perto um gigante escuro, os braços ao léu cobertos de tatuagens e a cabeça rapada, uma mortífera musculatura que lhe descia pelo pescoço decerto até às unhas, entretinha-se deglutindo pacificamente umas sardinhas assadas.

 - Está bem, será um gorila. E então? Isto é um restaurante de gente séria, o patrão até é de Basto, um minhoto como eu. E que se saiba ainda ninguém disse são os gorilas os transmissores do vírus. Porque não os chimpanzés? Ou os saguis, os babuínos? Os gibões ou os orangotangos de Bornéu e da Samatra? Olhe, suspeito muito dos macacos do rochedo de Gibraltar e de algum artíficio laboratorial na eterna contenda entre britânicos e espanhois. Está na moda...

Ainda assim, foi quase preciso enfiar-lhe as lulas pela boca abaixo. Um copo todo de tinto, porém, restituiu-lhe alguma cor e a voz. Sentia-se cercada por símios, morria de medo da varíola... e tinha obrigatoriamente de ir a Sete Rios. Mas como, com tantos chimpanzés, babuínos, saguis, por lá? Nos transportes públicos jamais!

Ofereci-lhe a minha companhia. Iriamos num Uber. Ela vacilou e acabou por aceitar, mirando de soslaio a minha bengala. E assim acabámos um soturno almoço, sem talheres a jogar à espada com as suas pulseiras, nem com a energia e o espevite das suas costumeiras teorias.

Nem mesmo com a curiosidade da minha amiga em saber o porquê daquele apetrecho, a minha bengala!...

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 27.02.22

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Enfim, vão lá doze anos em que sempre pontificaram os nossos encontros fortuitos. Mas agora a gente combina previamente o programa, por norma de raiz cultural. E os Jerónimos, fatalmente, estavam no roteiro da minha máquina fotográfica. Planeámos tudo, incluindo a deslocação no eléctrico, o tempo bastante para uma antecipada explicação de mundividência histórica que ouvi sem interromper. - Ah!, o manuelino! A imagem de um mundo finalmente aberto e ecuménico! - E todo aquele estilo arquitectónico foi devassado, traduzido, nessa imensa viagem palratória. Com as suas pulseiras tilintando de fulgor e patriotismo.

O facto é que chegámos ao dito "Oriente" de uma riqueza que já lá vai. (Eu nem aconselhei a minha loira amiga a ler Antero, as suas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, não se desse o caso de ser respondido à estalada...) E desembarcámos com o seu anúncio de uma visão mística da Arte e da Fé, da História e da plenitude do ambiente que envolve o mosteiro.

Assim fomos andando. Esperava-nos a memória de Camões, de Vasco da Gama... Entre visitantes plurirraciais, predominantemente de olhos em bico, uma visão que eu colocaria no Terreiro do Paço pré-Terramoto, aos magotes para bisbilhotar o interior dos Jerónimos, longas filas que se atropelavam. Foi quando a minha cintilante amiga se exasperou e bradou que Portugal era dos portugueses e outras atoardas que felizmente a Catarina Martins não ouviu. Dando ordem de marcha para os célebres pasteis de Belém, onde idêntica moratória nos penitenciou, sempre no cantochão da gentinha que nem sabe ao que ali vai e diatribes similares.

Finalmente o (aliás, delicioso) docesinho. Acompanhado de umas águas-das-pedras (naturais, implorava eu) assaz acalmantes. E o regresso ao Cais do Sodré. Não, jurei calado, nunca mais. Doravante, qualquer jantarinho em pacato restaurante do Bairro de Alvalade ou até mesmo umas codornizes em churrasqueira de Sacavém. Os gritos de - Por S. Jorge! Por S. Jorge! - é que chegaram uma vez por todas... Nós, minhotos, entendemo-nos bem com os galegos, não nos queremos privados das tainas deles. Que se dane a Cultura!

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 05.12.21

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Acabadinho de chegar de avião, numa dessas viagens em que se vê o mundo pelo canudo da máquina fotográfica. Mas recusando confessar as razões porque decidi aterrar na Portela de Sacavém... Mesmo muito cansado, dei comigo em Alfama, às voltas como os meus perdigueiros, de faro no ar. Ou melhor: de ouvido no zumbido da cidade. E tanto me ensinaram os cães, não demorou topar as eternas pulseiras, em toque de mágoa num laço onde Lisboa me estrangulava. - Olá! - Olá!!! Por cá?! - Pois, pela Capital, já nem recordava sob que pretexto... Isto tudo na Rua dos Remédios, com o Beco do Surra a descer de esguelha. Evidentemente, encontrara as coordenadas do nosso almoço, já ali, num tasco qualquer. E sentámo-nos à mesa, proclamando peixe fresco: robalo para os dois.

Nunca antes o frente-a-frente fora tão doloroso. É certo, a sua cabeleira permanecia dourada, brilhante. Mas o resto... Emagrecera em demasia e achei-a macilenta, triste, deslavada, com as pulseiras a dobrar a finados... E uma máscara a tomar-lhe a bonita, espevitada, expressão. - O covid veio para ficar, somos todos "cadáveres adiados" - definhava ela.

Desculpei-lhe o lugar-comum mensagista-sebastianista. Foi só falsa intuição minha, não se afogou em aguardente. Enfim, a usual arte dos ditos estafados. Com a escolha dos vinhos a meu cargo, chamei uma pinga alentejana de calibre 14º, e a minha querida amiga quase tomou conta da garrafa, como se de uma vacina anti-pandémica. Então palrou.

É óbvio, a conversa travou-se apenas entre nós. Esqueçam, por isso, a volúpia dos pormenores. Agora sei - adianto somente - muito da sua vida, mais da solidão e dos temores que a levaram a um recôndito estúdio sobre Santa Apolónia, em busca da paz, do Tejo-pai e da saúde.

- Mas está doente? - interroguei, alarmado. Não estava, mas podia vir a estar... - Ora, ora... -  Ora nada, o covid... Como se impunha, calei as minhas andanças por países dos milhares de novos casos diários. E o almoço foi isto.

Isto e a conta final, que a minha delícia insistiu a meias, "à moda do Porto". (Comigo, com um Senhor do Minho!...) Olhando o papelucho trazido à mesa, cresceu de indignidade - O robalo era só espinhas, refugo de anteontem, uma porcaria!... - A máscara dorida fugiu-lhe da cara e ainda cuspitou (cuspitaram-se, ela e a patroa, a D. Fulgência), ampla troca de mimos - Oh! filha, para a próxima vez escolhe o Tavares! - Escolho é a DECO! - Anda lá, paga, senão chamo a Polícia! - Vale dizer, uma prolongada troca de mimos e ripostarias, comigo sem voz a acenar o cartão Multibanco, como o simbólico trapo branco dos vencidos.

Afinal despedimo-nos afectuosamente. Percebi, regressava a casa, o seu esconderijo, o sossego da sua quarentena, com mais um teste na primeira farmácia do percurso. Esse mesmo propósito me ocorreu, não fosse a dita chuvada de perdigotos inflamar o Norte inteiro. Mas, verifico tantos dias volvidos, teria sido um desperdício! 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.09.21

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Lisboa está diferente. Entre ruas ou avenidas e os passeios tem umas vias estreitas com muitos desenhos de velocípedes. E centenas de bicicletas e trotinetas presas como vacas leiteiras, propriedade da Câmara Municipal, à disposição dos transeuntes. Abismei! Sempre com a noção de que, depois de Cristo ter dado a vida por nós, nada é oferecido, tudo se paga. Mas eu não sabia como era, nem me apetecia pedalar. Assim fui indo, atento às novidades, movido pelas pernas desde o Saldanha até Santa Apolónia. Confesso - tão cedo não tenciono voltar à Capital.

O trânsito automóvel é o mesmo. Raríssimos os ciclistas. Restavam as trotinetas que eu vi a curvarem como o Miguel Oliveira, o joelho dos condutores a rasar o pavimento. E havia também uns trotinetões, tamanho FPB (família pequeno-burguesa), sem embargo do consequente aspecto achinesado da sede do Império, algo a que os cristãos-velhos portucalenses torcem desagradados o nariz.

Depois, as trotinetas, velocíssimas, silenciosas quais raposas, assemelharam-se-me o perigo maior. Deixei as cautelas com os autocarros e os táxis e centrei-me, obsessivamente num hipotético título da primeira página do CM - "Nortenho vem a Lisboa e morre trucidado por uma trotineta"... (Subtítulo - "O óbito foi declarado no local"...)

Não, todo o cuidado era pouco. E tão prevenido seguia, nem dei conta da minha amiga (não fora o tilintar das suas pulseiras) ali pelo Rossio, a calça de ganga elástica, a perna... a perna, meu Deus, iam-me saltando pensamentos que eu enxotava com a mão, como se varejeiras fossem... - Olá!!! - Olá!!! Por aqui???

Por ali, pois, a caminho do comboio. - Mas assim? Porque não de bicicleta? - Em boa verdade, tive vergonha de lhe dizer, ignorava como desencabrestar as máquinas. E alvitrei com a necessidade, esta mania de andar... em último recurso, o táxi...

Tomou-se de fúrias. Foi longa a prelecção sobre o dióxido de carbono e todos os modernos ditames acerca da vida saudável. Tudo ouvi na maior humildade, espreitando de través o relógio. Já só podia apaziguar a sua exaltação prometendo apanhar a primeira trotineta que encontrasse, encostada a uma esquina qualquer. A minha amiga deve-se ter dado por satisfeita, sentou-se no banco de um triciclo e deu as suas ordens. Partiu. Atrás dela, ao volante, esgatanhando-se a pedalar, um asiático baixinho, já a suar em bica. Santo Deus, a minha tilintante amiga, loirissima, combatia o dióxido de carbono a bordo de um riquexó!

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 17.06.21

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Agora mesmo me pergunto como fui parar a Lisboa em plena maré dos Santos Populares. Qualquer coisa se me atravessou no espírito, que por cá vou permanecendo sem dar com o caminho de regresso. Enfim, coisas de parolo cosmopolita, guloso de tudo quanto seja novidade, desde a boa mesa do Jockey às maravilhas da Fertagus. Por isso me decidi a uma cristianíssima cruzada na Margem Sul - tomando-a de surpresa a bordo de um comboio.

É claro, dirigia-me, então, para a estação, já nas cercanias do Hotel Roma, quando dou conta da minha amiga, caminhando furiosamente, a parecer falar sozinha. Vinha dos lados da Praça de Londres, em todas as interessantes transparências inerentes a esta acalorada época e, pelo tilintar das pulseiras, muito, muitíssimo, contrariada.

Estaquei, firmei a lança no passeio, como os nossos antepassados guerreiros, e aguardei a arremetida.

Mal me cumprimentou, possessa, a fumegar. Há longos meses preparando a marcha de Roma/Areeiro e, acabavam de lhe confirmar, a besta do Medina este ano proibira o desfile na Avenida da Liberdade. - Por causa dessa estúpida covid inofensiva! - exaltava-se, muito negacionista.

Prudentemente, mantive o silêncio. - Uma marcha de Roma/Areeiro? - pensei - E como seria a coreografia? Eles de blusão negro e capacete, elas de jeans com os joelhos à vista? E as motas rugindo a fazer "cavalinhos"?

Aguardei por mais informações que não chegaram. A minha querida amiga terá pensado que a zona se solidarizava consigo. E vai de ensaiar o seu inédito repertório, desatando a saraquitar, as mãos à cinta, entre as mesas da esplanada mais próxima - «Um craveiro nas águas-furtadas/cheira bem, cheira a Lisboa/Uma rosa a florir na Tapada/cheira bem, cheira a Lisboa», tralará, tralará, lalalá...

E perante a estupefacção dos presentes, este manjerico nortenho, deitou-lhe as mãos aos ombros e, em filinha, gingou e cantou com ela, também, acudindo à sua súbita "branca" - «...A fragata que se ergue na proa/a varina que teima em passar/cheiram bem porque são de Lisboa/Lisboa tem cheiro de flores e de mar».

Após o que, tomando as rédeas ao cavalo do meu destino, montei, desci à gare e embarquei no trem para mais uma epopeia do Barreiro a Almada.

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 01.05.21

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A brincar, a brincar, vai lá uma década! Como o tempo corre, parece ter sido ontem a minha estadia em Lisboa no quartinho ao Campo das Cebolas, a sua dona tão amável, soube há pouco, sucumbira à famigerada covid, coitadinha! Que impressão!, nunca a senhora me falara em familiares, como teriam sido os seus últimos dias, onde repousaria agora?, que eu lá iria a uma visita, um pensamento mais perto pensado...

Então, as minhas deslocações diárias à Torre do Tombo, o eléctrico (o bintóito) propositadamente apanhado para me cruzar com ela: sempre arisca, a pequena, sempre cheia de energia e projectos, sempre defensora de causas agitadas pelo tinir das suas pulseiras. Loirinha, de magnífico torneado.

Custou aceitar, não era menina de se lhe deitar a mão. Mas fomos criando essa amizade com o seu quê de áspero, rematada em fugidios beijos de despedida.

Agora mesmo, invariavelmente envolvido em investigações locais sobre a minha terra, que em absoluto dispensa a Torre do Tombo, vou com alguma regularidade a Lisboa, a visitar os amigos e um ou outro conspirador monárquico, conquanto já não vá nessas balelas da sedição dos quarteis. Ah!, esquecia-me: tenho um telemóvel e assim manifesto à minha amiga um Feliz Natal, uma Santa Páscoa (ela o "Santa" chuta para fora), os parabéns, quando faz anos (do meu aniversário, invariavelmente esquece-se...), e a convido para jantar, se estou na Capital.

Isso aconteceu recentemente, já depois do desconfinamento, num restaurante enorme das Docas, quase vazio, uma pequena fortuna a debitar no meu cartão de crédito...

E não pude deixar de sorrir ao recordar o nosso primeiro jantar. Ainda no tempo do quartinho no Campo das Cebolas. A minha amiga muito empenhada em ensinar-me a estar à mesa; eu forçando uma certa boçalidade provinciana, só porque me sabiam bem as suas mãos nas minhas, a quente fragância do seu perfume (também sei dizer estas coisas) a rondar-me o nariz... Enfim, tão completa massagem espiritual.

Mas não deixei, então, de lhe dar a sapatadita com luva branca: muito esticadinho e em tom discretíssimo, chamei o funcionário - que tirasse de cima da mesa a garrafa do, aliás excelente, tinto alentejano e trouxesse um apoio lateral para a mesma; em alternativa, cumprisse a sua missão de vaivém, a cada vez que os copos necessitassem de recarga.

Ele, muito atencioso, aquiesceu com uma vénia quase. Ela apercebeu-se. Eu nada acrescentei. No entanto, aquelas pulseiras não mais tilintaram essa noite, como num silêncio de quem está na ressaca do Santo António.

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 13.02.21

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Vai haver gritaria, mas o certo é que fui, pelos mais altos poderes, enviado a Lisboa para avaliar a maluqueira dos lisboetas nesta altura do covid. Missão: trazer ao Norte todas as evidências contra a ordem pública. Empreendimento por demais simples, conquanto arriscado - como se comporta aquela gente em tão profíqua maré pandémica?

Garantido o seguro de vida, parti. Mascarado, previdente, incógnito e desconfiado. Não era caso para menos... E, andando, andando, anotando um rol vasto de tolices, dei comigo na Praça de Alvalade: um espaço amplo mas perigoso, em que parei, desanuviei o nariz e contemplei.

Lembrei o Santo e o santo Amigo, seu estudioso, há muitos anos já no Céu. Muito chorado entre os principais da minha Família, esse grande Senhor. E estava eu em tais pensamentos quando ouvi tilintar.

O meu cabelo, a minha alva barba, não há máscaras que os disfarcem. Sei bem, as pulseiras no inverno ficam esquecidas na gaveta. Elas não se vêem, nem cumprem o seu sonoro dever, entre camisolas e casacões. Ainda assim, havia ali algo de um ritmo próximo, de sempre. Olhámo-nos: a mascara dela estava carregada de sinetas, faces abaixo. E eu já a fazer-me ao beijinho, a tirar o trapo de cima da boca, e Sua Excelência, - Não, não, todas as cautelas e mais algumas, vivemos um perigo iminente!

Obedeci. E nasalmente fomos discorrendo sobre Santo António, o padroeiro de Lisboa, nas decididas e aloiradas palavras da minha Amiga.

- Olhe que o padroeiro é S. Vicente - retorquia este minhoto, aliás muito devoto do santo, que há gerações tem nome nos primogénitos da sua estirpe... - Nada! É Santo António, é só ver pelo nosso feriado municipal...

Lá me tentei explicar. Na minha terra, o feriado é o mesmo, mas o orago é Santo Adrião. E, sem querer, aproximava-me. - Espere aí! Respeite o distanciamento social! Respeite a etiqueta! E ponto final, o nosso padroeiro é Santo António!

S. Vicente é assaz mais milagreiro. Nesta sua imprecaução, a minha Amiga, sempre cintilante, campaínhas em vez de pulseiras, e com tantas cautelas, espirrou caudalosamente, vazando a sua máscara e atingindo-me em cheio nos óculos.

- E agora? - vinguei-me - fico de quarentena? Valha-me Santo Adrião, S. Vicente e o conúbio de Santos Antónios, o famalicense e o alfacinha...

Ainda a minha loiríssima Amiga me quis convidar para almoçar, à laia de perdão. Tão assarapantada estava que esqueceu, o confinamento fechou os restaurantes todos...