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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Madrid (II) - Entre a Calle A Tocha e o Paseo del Prado

João-Afonso Machado, 10.12.22

O Hotel Mexico não é uma estância de luxo exactamente mas fica bem localizado, sobretudo para estadias breves. Assim o deixei, manhãzinha cedo, através da Calle A Tocha, rumo ao centro de Madrid. Nunca compreendi, porém, alguém que se admirou do meu propósito pedonal...

Não podia ser diferente. Tratava-se de tomar o pulso à grande cidade nos seus lugares mais afamados e também nas esquinas onde se vive a vida diária. Como o mercado Anton Martin, por exemplo,

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um despreconceituado lugar dos residentes, a caminho da Plaza Mayor, onde encontraria o símbolo desta Capital.

Somente... o Natal tinha tomado conta dela. Fileiras e fileiras de barracas ajustadas todas ao tema Navidad.

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Era o que lá se vendia: as peças múltiplas dos mais imaginativos presépios, sem novidade de maior entre as montras vizinhas.

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Dando-se o caso de o cenário ser repetitivo - e os pais estarem já fornecidos - a costumeira diversão para a criançada, o malabarismo para o espaço crescer...

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Pese embora, ficou a minha firme convicção de como os madrilenos gostam da quadra e a vivem na euforia das ruas. Na Plaza Mayor, orbitando em volta de Felipe III,

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o segundo que nos reinou longe de deixar boas memórias...

Em Madrid os estabelecimentos preocupam-se muito em nos dar de comer. Com ou sem categoria. Mas bastará um quase nada de atenção para aprender a distingui-los. É um pouco a velha questão dos alumínios... Ou, se quiserem, das aparências. 

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Eu trazia no ouvido e topara no mapa (curioso como actualmente se despreza o papel em favor das biblias dos telemóveis...) a zona de apetite de Madrid de los Austrias. Pois a procurei, pois a encontrei.

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Comércio! Comércio e mais comércio! O bródio do Natal consumista! Entre edifícios belle époque como se ainda fosse o renascimento das  cinzas da Guerra Civil. Assim na Puerta del Sol, outra monumental praça carregada de polícia e de obras.

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Não obstante os milhares de turistas e pregoeiros de outros idiomas, Madrid, indiferente à época do ano, era dos madrilenos. Das suas numerosas famílias

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e das coberturas das fachadas a toldarem as vistas de quem chegava.

Regressei no meu passeio pela Calle de Alcalá. Regalei-me com o Palacio de la Independencia

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e com a Fuente de Neptuno,

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antes de me embrenhar no Paseo del Prado. Suspirei aliviado, envolvi-me em tons verdes e vozes de baixa rotação, dera a volta.

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O hotel ficava logo ali, a tempo de uma tortilla e um copo de Rioja.

 

Madrid (I) - O Parque del Buen Retiro

João-Afonso Machado, 06.12.22

Ao longo de toda a rampa, a feira semanal de livros antigos. Uma tentação, obras de se agarrarem com as duas mãos e a razão a conseguir sobrepor-se - a exorbitância dos preços, a dificuldade no seu transporte. Dois cavalos da Guarda fizeram-se ouvir na calçada e a sua tranquilidade veio também refrear tais impulsos. A volta prosseguiu, pois, com a entrada no Parque del Buen Retiro.

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Estão ali cerca de 125 hectares, mesmo perto do Centro de Madrid (e especialmente do meu hotel...), uma área que talvez nenhuma propriedade minhota alcance; uma assinalável mancha verde no mapa da cidade. Fiz prévias perguntas, ouvi estranhas respostas: uma logista macarroneou não sei que alusão a «evil». - Evil? Esta maldito porque?

Não sabia. Nem acescentava fosse mal frequentado. Coisas antigas...

O Parque, constatei, estava, sim, sobrefrequentado. Era sábado e toda a Madrid convergiu para cima do meu sossego. «Evil»... Que romaria nas suas diversas entradas! E localizando-se estas em portões imponentes, de onde nasciam as suas "avenidas" principais, rapidamente me escapuli para as ramificações, caminhos toscos e escondidos pelo arvoredo. Talvez desse com um dos derradeiros lobos da região...

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Mas o que descobri cortou cerce as minhas ilusões. Loriquitos! Às centenas. No chão e abrigados nas copas dos pinheiros e cedros. Chilreando infernalmente!

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Onde está praga dá, poucos mais se aguentam, despedaçados pelos seus agressivos trombis. Pelas redondezas sobravam pombas, algum melro na clandestinidade, pegas aos pares (porque com estas, muita atenção!...)

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e um bico grossudo, entretidíssimo em ramagens nuas, um pássaro que nunca até então fotografara.

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Assim o passeio prosseguiu todo mundano já. Havia água correndo e o seu destino era o «estanque». Qualquer coisa a fazer lembrar, mais pobrezinho, a pomposa Versaillhes.

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É, uma Versailles popular com dezenas de barquinhos a remos a transbordar de famílias inteiras rodeadas de... gaivotas, aos molhos, e até, como sinaleiros no cais, alguns corvos-marinhos! Em pleno coração da Peninsula Ibérica!

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Em redor do «estanque» o auge da animação. Dava-se de comer aos patos e às carpas. Ouvia-se música, mesmo algum bem tocado jazz, duas chicas dançavam e o trompetista piscava-lhes o olho...

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Tudo isto rodeado de muitas esplanadas, vale dizer de horas e horas de espera para ser atendido. Desviei-me para a banda. Bonecos gigantescos de peluche espaventando-se à cata de uma moeda estorquida às criancinhas, a imaginação das estátuas vivas,

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a visão de um casal de piadeiras, quer nadando,

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quer voando (o tempo de espera, o meu, para assistir e fotografar a passagem!).

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e Afonso XII, O Pacificador, por todos zelando no topo do seu pedestal.

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A manhã estava feita neste seu reino de palradores e psitacídeos. Abalei em demanda de lugar recôndito para o almoço.

 

Arcos de Valdevez

João-Afonso Machado, 16.11.22

Começo com aves. Já quase encostado a Espanha, no coração do Alto Minho, onde a gaivota chegou na prudente quantidade que não a transforma numa praga.

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Apenas, como a garça real, mais uma comensal ribeirinha do Vez, decerto o mais bucólico e atraente rio da provincia.

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Um afluente do Lima. Pimponeando-se no arvoredo das suas margens, a pega rabuda contará o resto do dia.

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A vila dos Arcos de Valdevez, sede concelhia, deixando de lado origens e episódios antiquíssimos, foi o palco do célebre torneio de 1141 em que se confrontaram cavaleiros portucalenses e leoneses, com inquestionável vitória daqueles.

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Assim ficou aberto o corredor para o tratado de Zamora (1143), marcante da Fundação do Reino de Portugal. "Arcos de Valdevez, Onde Portugal se Fez" - é a frase-símbolo local. Mas as margens do rio ainda chamam por nós, chamarão sempre. A montante não haverá barragens nem a obesidade mórbida das albufeiras a matar-lhe a saúde. Aos pés da vila, a ponte antiga

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aponta ao "cruzeiro dos milagres" e ao hotel que é o seu pano de fundo.

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O rio são águas transparentes, ilhas, voltas caprichosas, vegetação e pontões e pontinhas;

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remansos e momentos furiosos; sol que aquece ou frescura que alivia; e muito peixinho, entre trutas e barbos.

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Já a vila dos Arcos se pauta por uma serenidade quase inquietante. No seu alto, entre jardins

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e arruamentos, o mundo deixou-nos em paz

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E, se calhar envergonhada dos prédios e das urbanizações que vão atacando a periferia, presenteia os viajantes com as vistas do barroco da sua igreja da Misericórdia,

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da Casa do Requeixo (agora um hotel de charme)

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ou do ancestral e icónico Paço da Giela.

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É o tempo das cores do Outono. Os Arcos vivem (mais ainda...) a sua quietude.

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Só lá para Março, regressarão as canas de pesca: as tardes sobre as pontes ou nas margens, a conversa fiada, o gozo dos nativos no seu Vez...

 

Amora

João-Afonso Machado, 22.10.22

É uma cidade no concelho do Seixal. Uma vila, durante breve estação. E uma freguesia durante séculos de pousio das populações, dos moleiros e da vida piscatória. Era ainda apenas freguesia, logrou a proeza de se alcandorar à I Divisão Nacional futebolística. O Amora Futebol Clube! Não havia precedentes nessa façanha e assim a terreóla entrou no mapa dos meus conhecimentos.

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Por essa altura, e por mero acaso, li um edital num jornal qualquer um assunto macabro: notificavam-se os familiares de umas vastas dezenas de defuntos para removerem as suas ossadas do  cemitério de Amora, sob pena de as mesmas serem encaminhadas para a vala comum. Os nomes dos extintos, a modo que guineenses, indiciavam o fim da primeira geração dos retornados (refugiados?) das nossas ex-províncias ultramarinas...

Logo vislumbrei um mundo zombie, repleto de anonimato. Mas era um rapaz novo, com voos apontados a outras paragens. Pus o pé na Amora somente há dois anos. No Verão, para jantar um peixito.

Agora voltei. No intuito de conhecer o que de antemão perspectivara. Uma aldeia num foguete transfigurada em outra cidade satélite. Urgia galgar as torres e alcançar os bocados carcomidos do seu berço.

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Lá mais acima a vista é animadora. Mais a mais na maré baixa do Tejo e da baía que se entretém a baralhar-nos no posicionamento das localidades. Chegar ao rio é um instante, almoçar junto do cais uma delícia se não for uma dominguice pesada de famílias e criancinhas chorosas, valendo-se apenas de polvo à lagareira.

E depois o passeio.

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A Sociedade Filarmónica Operária de Amora (o operariado ainda é tema aqui...) ignoro como se organizou num magnífico edifício junto à baía. Como ignoro o que faz ou tenciona fazer no que me palpita já ter sido apenas o cinema local. Ante ela uma rampa que decerto findaria nos primórdios da freguesia que eu buscava.

Mas a maré vaza podia fugir. Por isso não deixei as águas para trás e o que a sua ausência põe ao léu, o mundo antigo de que sobram algumas carcassas,

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mesmo em plena decomposição, ossadas, o tema inicial de Amora.

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E as aves, sempre as aves, a maior riqueza do Tejo: pilritos, gaivotas,

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garças, maçaricos... Quem, daquelas torres periféricas, com gosto de as apreciar?

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Iniciada a escalada, após, o vetusto casario de Amora. Os seus "palácios". A roupa secava no exterior não obstante os grossos pingos de chuva. Sempre com a aparência mais natural.

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A igreja paroquial pedia meças à da minha aldeia, onde todos conhecem todos e a lavoura é modo de vida... Um velório na casa funerária com cinco participantes cumprindo o seu dever, o que seria feito dos vizinhos?... Nos portais do cemitério, colados, rasgados, os já referidos editais, passaportes definitivos para o breu da História.

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Mas uma muito idosa ainda visitava campas decoradas com flores artificiais - as gentes talvez não, mas a humanidade estará por uma geração ou duas mais...

 

Vizela

João-Afonso Machado, 27.09.22

O ambiente nunca foi harmonioso. Mas em 1982 o motim eclodiu: a população toda na rua, os sinos tocando a rebate, o caminho-de-ferro de carris levantados... Vizela queria ser concelho, reclamava meia dúzia de freguesias para o constituir, e pela noite fora os archotes acesos incendiaram impropérios contra o imperialismo de Guimarães.

Simpatizante da facção vimaranense (que a minha gente é muito de lá), durante anos não tornei a Vizela. Mas a idade tudo esquece e o tempo tem gestos benfazejos como, por exemplo, produzir ruínas e castigar famigerados texteis.

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Ainda agora percebe-se estamos numa fase de grande indecisão. E de perplexidade: restarão vestígios de uma eventual visigótica ou henriquina indústria?

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Vizela, alcançada a alforria concelhia em 1998, por ora não tem resposta. Prepara o seu Museu da Indústria Textil (do qual passo ao lado), mas resguarda o centro (a antiga vila) de toda essa confusão produtiva e laboral e, claro, aposta na sua riqueza termal.

(Propositadamente para lá parti sem sequer um livro na mochila. Demandei a livraria, o ensaio sobre Camilo Castelo Branco em Vizela,

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algo que me levasse adiante dos Gracejos que matam das Novelas do Minho - debalde, porém. O gosto da leitura rareia nestas caldas e eu não encontrei melhor, para me entreter à noite, do que um romancezeco do Mário Zambuzal.

Como quer que seja, a Vizela antiga defende-se bem. Banha-a o rio com o seu nome,

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dá-lhe sombra o frondoso Parque das Termas, lugar de amores e enredos camilianos.

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De muitas árvores e lagos,

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de muitos silêncios e amigáveis seres,

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com o curso fluvial sempre a ladeá-lo.

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A cidade não é monumental mas as suas praças são aprazíveis lugares sem berraria. Ficam ainda indeléveis marcos da riqueza de outrora

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e de um comércio como já não há.

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Além disso, ainda que os edifícios vão caindo aos pedaços, sempre sobraçarão a bandeira do novo concelho, pregada nas frontarias. É assim por toda a Vizela

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que exibe também saborosas febras do humor minhoto.

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Os hoteis, irmãos amicíssimos das termas, juntam-se na rua principal (recordo a quietude da parança), não longe do parque. Tudo vai sendo recuperado mantendo traços simpáticos da arquitectura dos primórdios.

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Os dias passeiam-se tranquilos como as tartarugas e os cágados nos penedos do rio.

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A jusante das termas vamos descobrir (com imensa pompa indicativa) a ponte romana. Ou não será românica?

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Estou em crer que os letreiros enganam: a edificação actual é já uma reconstrução medieva. A Ponte Velha, assim é mais justamente nomeado este monumento nacional. Desta Vizela tão recente e tão antiga em História a que poucos parecem atender.

 

Bares (A Coruña)

João-Afonso Machado, 03.09.22

Foram cerca de 50 quilómetros desde o Ferrol até este marco inesquecível da Península Ibérica, o seu extremo setentrional. Para nós, minhotos e galegos, uma referência. Qual seja ela, o fim do nosso mundo, o início da outra Europa.

Neste correcto modo de falar, se a Punta de Estaca de Bares não ficou para trás é porque não negligenciei o início geográfico de todo o meu ser: Mesmo a começar no embrião. Ora não há espeto mais profundo nas nossas águas marinhas que não seja ela, a Punta de Estaca de Bares. É ir o mapa e tirar as medidas à nossa Peninsula!

Essa a realidade que eu queria sentir. Ver... - e sentir. Espreitando a norte, onde o sol não nasce e se adivinha um oceano solitário, temeroso desfecho, encerrado em si mesmo.

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É a terra de Bares, no concelho de Meñón, Corunha. A mais caprichosa costa marítima, entre recortes de mulher fatal, latina de faca na liga. Mas a gente chega lá...

E, chegando, dá com essa lâmina afiada a furar mais longe o oceano. No ponto geográfico onde os mapas dizem o fim do Atlântico e o princípio do Mar Cantábrico - uivante evocação dos idos da gesta romana! Tal a solenidade dessa falésia.

Para o lado oposto, a poente, outro aguilhão, quase tão afiado, a esburacar também fundo as águas - o Cabo Ortegal, já nos domínios concelhios de Cariño.

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Chegar ao destino foi, por fim, um repouso. A Punta de Estaca de Bares tem beleza sem par, cresce alta e povoada de ecos e rebanhos.

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Fez-se Reserva Natural e dispõe de um tosco farol que passa ao lado das intenções do visitante. É um dos ambientes de maior pluviosidade na Península - comprovadamente neste final de Agosto - sempre condizente com a fauna que vai e vem (quantas espécies ornitológicas!) ou permanece. Num instante ganhei as graças de um cartacho do norte, variedade só destas lonjuras,

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feliz e despreocupado, amigo e fotogénico, revelando quanto não é perseguido...

Havia muito ainda entre aqueles promontórios de ondas insonoras. A Punta de Estaca de Bares podia ser um dia inteiro ou uma vida toda.

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Mas quem vai de viagem segue nesse sofrimento de conhecer à superfície e adiante. O pasto bravio é grande e, após o cabo, descendo íngreme fica um arremedo de baía pedregosa.

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Tornando atrás - seguindo a indicação de "praia e porto" - almocei e gozei a amenidade da pequena enseada e das embarcações nela fundeadas.

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Nesse exíguo povoado com todas as casas de comer que não vislumbrei em mais lado algum desprezei o marisco e, inusitadamente, comi carne. Diante mim, o ilhéu misterioso, sem nome por que respondesse

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e a praia, bem areada vilegiatura de alguns espartanos, dos que dormem no gelo, se forçoso for.

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Estávamos no início da Ria de Barquero. Com sintomas de protecção proto-histórica contra os efeitos das marés e afiançadas manifestações de ocupação fenícia. (Isto de a gente andar com os olhos no relógio...) Vim para cima. E somente à despedida, depois de uma repousada cerveja, conheci o centro do pueblo.

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Bebi-a, a cerveja, no único estabelecimento dessa Bares de velhos e bengalas, de total mudez. Onde será falacioso referir arruamentos além do principal, para o qual dá a pequena ermida de Santa Maria de Vadres...

 

No Ferrol (A Coruña)

João-Afonso Machado, 01.09.22

Posta no pico da Galiza, nas margens da Ria com o seu nome entrando muito desembaraçada terra adentro, ficava a ideia de uma cidade marítima vivendo ao ritmo das marés no trautear das embarcações piscatórias.

Assim o Ferrol me pregou a maior surpresa, não tanto pelas suas dilatadas dimensões quanto pela habilidade com que se esconde e tapa os olhares à Ria.

Mesmo porque o Hotel Silva (eu li "irmão" em "Silva"...) ficava num alto incaracteristico, feito de sucessivas encruzilhadas de ruas todas iguais e distantes da zona ribeirinha. Esta adivinhava-se pelos pescoços monstruosos dos guindastes, mas foi um tormento alcançá-la enfim.

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Muito por causa da Marinha, como se a guerra permanecesse no Ferrol.

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Os portões às catadupas; o muro da fortaleza quase a muralha da China. A parte histórica da cidade pertence ao Arsenal Militar

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e à Navantia, uma sociedade que administra os estaleiros e as poucas migalhas de vistas para as águas.

Só chegando, sem mapa, ao Paseo da Marina pude assentar numa esplanada frente ao Peirão de Curuxeiras e gozar finalmente duas canecas de Estrella Galicia e uma dose compacta de veleiros, lanchas e botes.

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Aí consegui tirar umas fotografias no intervalo de uma diplomática e inacabável conversação com duas galegas manas, ambas de dentes muito amarelos do tabaco e de uma amabilidade que me conduziu, no carro delas, de regresso ao Hotel Silva.

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Bem hajam as duas senhoras, ferozes castigadoras da memória do Caudillo e espíritos fieis à de D. Juan de Borbón. Eu creio que uma delas apreciava o tinto espanhol, no qual me aventuro pouco... Ainda assim acabei sabendo que, por trás de nós, ficava a Madalena, o que restava do burgo antigo, ainda e sempre escondido por muralhas.

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Pois o dia seguinte usei-o a explorar a Madalena, um xadrês de ruas pedonais com artérias de um só sentido automóvel. Complicado... Estimei o Paradoro do Ferrol e o seu mirante e estranhei o pouco comércio, o alheamento que ia pelas ruas pejadas das costumeiras varandas espanholas

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e com um ou outro edifício mais pitoresco.

No Ferrol, até ao ano 14, vivemos numa casa da Rua do Hospital» - escreveu Gonzalo Torrente Ballester, que daqui era natural, em O Sangue, o Vento, a Guerra e Outras Histórias. Mas não dei com ela, com a Rua do Hospital, somente com o Centro Torrente Ballester que, de resto, não visitei, conquanto aprecie imenso o escritor.)

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Nada que não se visse de uma penada só, e apenas uma loja de velharias e de livros em segunda mão, com uma montra convidativa, me podia impedir de corresponder a um chamamento vindo quase do Além: era o Castelo de San Felipe.

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Até lá, praias minusculas e o palco de mergulhos gelados de heroicos galaicos

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bem como a intensíssima percepção de os montes que se erguiam e estreitavam no desembocar da Ria do Ferrol em águas atlânticas.

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A modos de dois marinheiros do Arsenal, o castelo de San Felipe, do lado de cá, e o de A Palma, no de lá, vigiavam muitos séculos de movimentação marítima.

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Mas daí, graças aos Céus, vinham imagens mais cheias da Ria,

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dos navios de grande calado atracados, dos gestos portuários que a animavam.

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Do Ferrol me bastava. Voltei ao hotel, não sem antes jantar em O Pazo - vinos y tapas, já vizinho, a dona já conhecida também,

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afora o seu jamais proclamado nome, substituído pela sua fantástica ronha. («... uma criada nossa que cantava uma canção galega carregada de malícia que a mim, na altura, me passava despercebida»... - Torrente Balester, obra cit.)

 

Da Costa Nova a S. Jacinto

João-Afonso Machado, 23.08.22

É o exercício militar da temporada, superiormente orientado pelo Almirante Z. ao leme. Com rotas de navegação diversas, incluindo a da lendária "nascente" da Ria por um labirinto de canais descobertos na baixa-maré. A tripulação é numerosa, o frio cortante e aqui o comodoro tem a seu cargo a captação de imagens e a busca dos famigerados bandos de flamingos. Mas a operação gizada para este ano previa apenas um raid sobre as sardinhas assadas de S. Jacinto.

O primeiro contratempo a bordo não se fez esperar: ainda o semi-rigido ia em aceleração, o assoreamento, um banco de areia no coração da Ria, meio metro de profundidade das águas e o encalhe. (O comodoro, de pé, compenetrado nas suas funções, quase foi borda fora com o solavanco...) E a embarcação, lavrando o fundo arenoso, logrou prosseguir, troando sempre, generosa em adeuses ao pessoal à vela

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já no horizonte se perfilava a moderna ponte da Costa Nova.

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Por todos os cais da Barra traineiras e navios mercantes atracados,

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paisanos acenando entusiasmados com o garbo da nossa máquina de guerra.

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Pescava-se muito, com ou sem sucesso,

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e este experimentado comodoro sempre trouxe consigo uma garça branca

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sendo preocupantes as notícias que corriam de récuas de javalis invadindo a nado e povoando a ilha onde só os marítimos fazem praia.

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Por isso nos mantivemos em alerta enquanto o nosso heroico Almirante Z. partia sozinho num reconhecimento top secret.

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Já S. Jacinto elevava nos ares os aromas da sua riqueza de pratadas e pratadas de sardinha assada.

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Terrinha lenta, inofensiva, servida por ferrys e atractivos restaurantes, sem torres, sem magotes de pares de cuecas; onde os reformados utilizam a cana de pesca como se jogassem a bisca à sombra. S. Jacinto chama por nós resmoneando entre dentes - Venham, venham, enquanto é tempo!... - E faz rebrilhar no sol algumas das suas pérolas habitacionais a desafiarem a migração minhota até ao último e solene embarque do comodoro.

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Um dia, quiçá... Entretanto, levado a cabo o saque, devoradas as sardinhas todas, havia que regressar.

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Viemos em nova corrida e tomámos a margem ilhavense pelo Canal Oudinot até ao Forte da Barra. Era o epílogo da epopeia imensa.

 

Costa Nova do Prado

João-Afonso Machado, 19.08.22

«... E eu considero a Costa Nova um dos mais deliciosos pontos do globo. É verdade que estávamos lá em grande alegria e no excelente Palheiro de José Estêvão» - eis como Eça de Queiroz relatava em carta a um seu amigo (quem?) andanças pelas bandas de Aveiro em Junho de 1893. Quando a Costa Nova, da freguesia da Gafanha da Nazaré, Ilhavo, seria quase só uma lingua de areia a deitar fora entre a ria e o mar, e os palheiros começavam a não ser apenas armazéns de embarcações e artefactos de pesca. Em madeira pintada com restos de óleos e tintas que lhes davam o seu tom original, negro e acastanhado.

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José Estêvão Coelho de Magalhães, liberal convicto e um dos desembarcados no Mindelo, depois orador parlamentar fulminante, natural de Aveiro, era um desses proprietários e o seu filho, o Conselheiro Luís de Magalhães, já longe de tais lides, decerto rapidamente destinou o palheiro a residência de veraneio. Onde recebeu muitos dos das suas relações, conforme os seus descendentes ainda hoje praticam com os descendentes dos de então, que é o meu caso. Por lá passo todos os Agostos, por lá familiarmente sou acolhido para uns dias de passeio, de cavaqueira e de jantaradas. E de reencontro com esses senhores regrados pela honestidade e sentido de humor e por saberem ler e escrever. Estão todos no Palheiro mesmo agora, o grande José Maria sempre sofredor do bacalhau de cebolada, aflitíssimo à noite, ruidoso até, entupindo o acesso à casa de banho...

Mas a Costa Nova cresceu, virou lugar habitável e de férias, encheu-se de um zebrado multicolor que se transformou no seu ex-libris. Alegre, garrido, cercado de turismo. Ainda o outro dia, pessoa interessada me pediu um fornecimento de imagens desse casario e não houve senão como chamar o velho Figueira, o meu almocreve (se o intitulo recoveiro ele enfurece-se...) - Ó Figueira, mete a albarda ao burro e leva esta encomenda a tal parte, se fazes o favor. - E ia-lhe passando as imagens - Olha, leva esta

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e esta também,

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já agora...

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e assim como assim,

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...vai também outra, ainda que desafinada, mas pode ser que sirva para conserto...

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Enfim, acabei enchendo-lhe o saco todo. O Figueira mirou-o, mirou o dorso da alimária e disse coisas entre o imperceptível e o irrepetível, - Vai lá, Figueira, deixa-te de resmunguices que a viagem é longa, tens para uma semana, não menos. (O velho Figueira foi e sei que chegará ao seu destino, homem diligente e de confiança é ele, são muitas décadas de bons serviços.) Feito isto, encaminhei-me para a praia, a espreitar os cargueiros que passam a barra

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transportando sonhos, planos, outros mundos a que dali um dia chegarei a bordo. Membro da tripulação, cortando os ventos frios a goles de aguardente, esfregando talvez o convés, mas sempre com tempo para sorver o espaço sem fim à proa, mesmo na pontinha.

Enquanto não, atravesso a língua e, na ria, colho o silêncio das águas, os derradeiros moliceiros já só passeios estivais, motorizados, pagos à hora.

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Mas mesmo aí de espírito firme no encalhado, junto à marina,

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esse moliceiro que um dia há de voltar a carregar moliço, o cheiro do moliço e a prata dos peixitos apanhados nele, o rabiar das enguias ante o monóculo arguto do venerando Eça - Menino!!! - sôfrego de caldeirada e revivendo os caminhos por que trouxe Jacinto Galeão aos lugares sãos.

 

Midões do João Brandão

João-Afonso Machado, 16.08.22

Ainda haverá quem se lembre da cantilena - «Lá vai o João Brandão/A tocar o violão/Casaca da moda na mão/Atão, Atão, Atão». Menos certo é descobrir quem saiba do protagonista desta lengalenga já tão velha. Eis, pois:

Chamavam-lhe o "Terror das Beiras" e, filho de pai ferreiro, pertencia a uma família de ladrões impenitentes e pretensamente guerrilheiros no seguimento da Guerra Civil. Todos abençoados pelas instâncias liberais sempre aliviadas e coniventes com algumas mortes perpetradas pelo clã... Foi assim, com sucessivas acusações e absolvições, até ao advento da Regeneração e ao homicídio de um padre, crime pelo qual o João Brandão foi condenado à pena capital depois comutada no degredo em Angola. Onde, aliás, viria a ser assassinado...

Sucede, João Brandão era natural e residente em Midões, concelho extinto em 1853 e hoje uma freguesia do município de Tábua, Coimbra. Não muito longe dos contrafortes da Estrela. E, despromovida, Midões embezerrou no Tempo. Manteve a sua Matriz elegantíssima

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e o Palácio das Quatro Estações, mudo e quedo, numa galharda espera por um amanhã condigno.

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Mas será complicado encontrar outra localidade com igual densidade de património imobiliário antigo, às vezes devidamente restaurado,

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outras nem por isso. O pelourinho, todavia, mantem-se lá,

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tal qual interessantes aspectos do quotidiano. Como sejam a Fonte da Caricha, lavadouro comunitário de 1872,

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e o seu sucessor de 1981, quando o mundo inteiro girava no ritmo das máquinas eléctricas e Midões, ao que se vê, - não.

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Ficaram outras ruínas.

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Sobrou o casario antigo

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e bocados desmantelados ou remendados dele.

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Sobrevieram lugares atenciosos como as instalações da Junta da Freguesia e um quase pronto "hotel de charme".

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A que tudo acresce o aroma feliz que emana das figueiras e o esvoaçar das aves - rolas, corvos, milhafres - mais a razia nos galinheiros, proeza dos Joões Brandões de agora, as ginetas e as doninhas. Os cães serranos rugem por todos os cantos, vá lá saber-se porquê sorridentes à minha passagem...

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Foram tardes de calor maduro e piscina de amigos a terapeutizar a minha perna. E jantares como manda o figurino. Pelo meio, a imperdível memória do incêndio de Outubro de 2017, em que o fogo chegou via aérea aos pedaços de lenha ardente.

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Midões contabilizou então duas mortes, as de uns desgraçados que tudo faziam para salvar os seus haveres. A ruindade entrou pelos telhados e devorou alguns séculos de História documentada e pergaminhos familiares. Não que isso fosse tema à mesa... Mais depressa se comentava a presença britânica em Midões - mulheres peludas como lobisomens, sequinhas de peito e calçadas em sandálias feitas de pneus de bicicleta...