Um minhoto na Capital
Vai haver gritaria, mas o certo é que fui, pelos mais altos poderes, enviado a Lisboa para avaliar a maluqueira dos lisboetas nesta altura do covid. Missão: trazer ao Norte todas as evidências contra a ordem pública. Empreendimento por demais simples, conquanto arriscado - como se comporta aquela gente em tão profíqua maré pandémica?
Garantido o seguro de vida, parti. Mascarado, previdente, incógnito e desconfiado. Não era caso para menos... E, andando, andando, anotando um rol vasto de tolices, dei comigo na Praça de Alvalade: um espaço amplo mas perigoso, em que parei, desanuviei o nariz e contemplei.
Lembrei o Santo e o santo Amigo, seu estudioso, há muitos anos já no Céu. Muito chorado entre os principais da minha Família, esse grande Senhor. E estava eu em tais pensamentos quando ouvi tilintar.
O meu cabelo, a minha alva barba, não há máscaras que os disfarcem. Sei bem, as pulseiras no inverno ficam esquecidas na gaveta. Elas não se vêem, nem cumprem o seu sonoro dever, entre camisolas e casacões. Ainda assim, havia ali algo de um ritmo próximo, de sempre. Olhámo-nos: a mascara dela estava carregada de sinetas, faces abaixo. E eu já a fazer-me ao beijinho, a tirar o trapo de cima da boca, e Sua Excelência, - Não, não, todas as cautelas e mais algumas, vivemos um perigo iminente!
Obedeci. E nasalmente fomos discorrendo sobre Santo António, o padroeiro de Lisboa, nas decididas e aloiradas palavras da minha Amiga.
- Olhe que o padroeiro é S. Vicente - retorquia este minhoto, aliás muito devoto do santo, que há gerações tem nome nos primogénitos da sua estirpe... - Nada! É Santo António, é só ver pelo nosso feriado municipal...
Lá me tentei explicar. Na minha terra, o feriado é o mesmo, mas o orago é Santo Adrião. E, sem querer, aproximava-me. - Espere aí! Respeite o distanciamento social! Respeite a etiqueta! E ponto final, o nosso padroeiro é Santo António!
S. Vicente é assaz mais milagreiro. Nesta sua imprecaução, a minha Amiga, sempre cintilante, campaínhas em vez de pulseiras, e com tantas cautelas, espirrou caudalosamente, vazando a sua máscara e atingindo-me em cheio nos óculos.
- E agora? - vinguei-me - fico de quarentena? Valha-me Santo Adrião, S. Vicente e o conúbio de Santos Antónios, o famalicense e o alfacinha...
Ainda a minha loiríssima Amiga me quis convidar para almoçar, à laia de perdão. Tão assarapantada estava que esqueceu, o confinamento fechou os restaurantes todos...