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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 01.06.22

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Se há algo que em Lisboa contribui para o meu bem-estar é o Bairro de Alvalade. Despretensioso, sem pergaminhos embolorados nem conhecidos que se nos atrelam com historietas de antanho, o Bairro de Alvalade é luz e, mesmo na sua parcela mais comercial, é familiar, bem abastecido, jovial e muito limpinho nas cores dos seus prédios. Gosto daquelas varandas e janelas, da encruzilhada de ruas, das lojinhas de todos os tipos e dos muitos e bons restaurantes.

Não subsistia, por isso, qualquer óbice a que a minha amiga viesse lá das bandas da Estrela almoçar comigo a Alvalade. Mas notei-lhe uma certa contrariedade ao telefone, estranhei bastante e doí-me, embora acabássemos marcando local de encontro e hora para o dia seguinte.

E sempre a topei ao longe, ligeiramente atrasada e muito murcha. Caso único, talvez, não a distingui pelo tilintar das pulseiras. Também elas pareciam comungar do seu lutuoso silêncio. Outrossim o cabelo espigara, tornara-se loiro puído, envelhecido. Preguei a minha amiga sentada à mesa, antes que fugisse ou desfalecesse.

Ia balbuciar uns dizeres sobre a varíola dos macacos quando, após um relance de olhos pela sala, entrou a empalidecer, emudeceu, via-se que absolutamente tomada de medo pânico. E ali perto um gigante escuro, os braços ao léu cobertos de tatuagens e a cabeça rapada, uma mortífera musculatura que lhe descia pelo pescoço decerto até às unhas, entretinha-se deglutindo pacificamente umas sardinhas assadas.

 - Está bem, será um gorila. E então? Isto é um restaurante de gente séria, o patrão até é de Basto, um minhoto como eu. E que se saiba ainda ninguém disse são os gorilas os transmissores do vírus. Porque não os chimpanzés? Ou os saguis, os babuínos? Os gibões ou os orangotangos de Bornéu e da Samatra? Olhe, suspeito muito dos macacos do rochedo de Gibraltar e de algum artíficio laboratorial na eterna contenda entre britânicos e espanhois. Está na moda...

Ainda assim, foi quase preciso enfiar-lhe as lulas pela boca abaixo. Um copo todo de tinto, porém, restituiu-lhe alguma cor e a voz. Sentia-se cercada por símios, morria de medo da varíola... e tinha obrigatoriamente de ir a Sete Rios. Mas como, com tantos chimpanzés, babuínos, saguis, por lá? Nos transportes públicos jamais!

Ofereci-lhe a minha companhia. Iriamos num Uber. Ela vacilou e acabou por aceitar, mirando de soslaio a minha bengala. E assim acabámos um soturno almoço, sem talheres a jogar à espada com as suas pulseiras, nem com a energia e o espevite das suas costumeiras teorias.

Nem mesmo com a curiosidade da minha amiga em saber o porquê daquele apetrecho, a minha bengala!...

 

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