Um minhoto na Capital
Acabadinho de chegar de avião, numa dessas viagens em que se vê o mundo pelo canudo da máquina fotográfica. Mas recusando confessar as razões porque decidi aterrar na Portela de Sacavém... Mesmo muito cansado, dei comigo em Alfama, às voltas como os meus perdigueiros, de faro no ar. Ou melhor: de ouvido no zumbido da cidade. E tanto me ensinaram os cães, não demorou topar as eternas pulseiras, em toque de mágoa num laço onde Lisboa me estrangulava. - Olá! - Olá!!! Por cá?! - Pois, pela Capital, já nem recordava sob que pretexto... Isto tudo na Rua dos Remédios, com o Beco do Surra a descer de esguelha. Evidentemente, encontrara as coordenadas do nosso almoço, já ali, num tasco qualquer. E sentámo-nos à mesa, proclamando peixe fresco: robalo para os dois.
Nunca antes o frente-a-frente fora tão doloroso. É certo, a sua cabeleira permanecia dourada, brilhante. Mas o resto... Emagrecera em demasia e achei-a macilenta, triste, deslavada, com as pulseiras a dobrar a finados... E uma máscara a tomar-lhe a bonita, espevitada, expressão. - O covid veio para ficar, somos todos "cadáveres adiados" - definhava ela.
Desculpei-lhe o lugar-comum mensagista-sebastianista. Foi só falsa intuição minha, não se afogou em aguardente. Enfim, a usual arte dos ditos estafados. Com a escolha dos vinhos a meu cargo, chamei uma pinga alentejana de calibre 14º, e a minha querida amiga quase tomou conta da garrafa, como se de uma vacina anti-pandémica. Então palrou.
É óbvio, a conversa travou-se apenas entre nós. Esqueçam, por isso, a volúpia dos pormenores. Agora sei - adianto somente - muito da sua vida, mais da solidão e dos temores que a levaram a um recôndito estúdio sobre Santa Apolónia, em busca da paz, do Tejo-pai e da saúde.
- Mas está doente? - interroguei, alarmado. Não estava, mas podia vir a estar... - Ora, ora... - Ora nada, o covid... Como se impunha, calei as minhas andanças por países dos milhares de novos casos diários. E o almoço foi isto.
Isto e a conta final, que a minha delícia insistiu a meias, "à moda do Porto". (Comigo, com um Senhor do Minho!...) Olhando o papelucho trazido à mesa, cresceu de indignidade - O robalo era só espinhas, refugo de anteontem, uma porcaria!... - A máscara dorida fugiu-lhe da cara e ainda cuspitou (cuspitaram-se, ela e a patroa, a D. Fulgência), ampla troca de mimos - Oh! filha, para a próxima vez escolhe o Tavares! - Escolho é a DECO! - Anda lá, paga, senão chamo a Polícia! - Vale dizer, uma prolongada troca de mimos e ripostarias, comigo sem voz a acenar o cartão Multibanco, como o simbólico trapo branco dos vencidos.
Afinal despedimo-nos afectuosamente. Percebi, regressava a casa, o seu esconderijo, o sossego da sua quarentena, com mais um teste na primeira farmácia do percurso. Esse mesmo propósito me ocorreu, não fosse a dita chuvada de perdigotos inflamar o Norte inteiro. Mas, verifico tantos dias volvidos, teria sido um desperdício!