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FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

FUGAS DO MEU TINTEIRO

Imagens e palavras de um mundo onde há menos gente

Vida

João-Afonso Machado, 21.08.21

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Só o nome – endoscopia – já assustava. Era a primeira vez, precedida da papelada bastante para generalizar o alarme, com a vida assim colocada em tão pouco tranquilizante visão. Sobretudo nestas alturas, o Passado regressa à tona e a vida olha-se como foi, medita, fará mesmo promessas em troca da sua sobrevivência no Presente.

A vida está embatucada. Muito ciente da sua carreira, do seu currículo, e já perdeu a conta aos anos que demorou a erigi-los. Somente… não dá a obra por terminada. A vida reclama mais tempo e a endoscopia responde-lhe com pontos de interrogação, reticências.

Furiosa, a vida folheia capítulos da sua adolescência e da juventude; e lança àquelas ameaçadoras tubagens fascículos inteiros da sua maturidade e do seu labor. Anos e anos a dar no duro, engolindo azares, provações, contrariedades, os seus momentos de felicidade são agora um inoportuno argumento, é o Presente exigindo, aos murros na mesa, o tempo do Futuro, uma prorrogação do prazo, faltam pedras nas paredes da torre e o telhado está por cobrir.

Exasperante endoscopia! Já deslizando garganta abaixo, já cheiricando o abdómen e suas adjacências. Escorregadia como o silêncio de uma cobra matreira, de olhar fixo, quase inexpressivo de tão parado. E desprovida de palavras, a provocar engasgamentos, o médico que a coordena somente recomendando sossego – Está quase, está quase!

Vale à vida a enfermeira, com os dedos no cabelo da padecente, cabelos brancos que a senhora alisa, acaricia. Parecendo querer tranquilizar, há vida para além da endoscopia… E talvez haja mesmo, tão personalizada se assumiu a vida, rejeitando a sedação, querendo-se vida vivida, acordada, consciente, senhora de si até para passar um mau bocado. Um Presente que deseja rapidamente Passado; rumo ao Futuro, ainda que assustada, ardendo de impaciência para também o guardar – quando outro Futuro substituir esse já velho Futuro - num arquivo qualquer, dos muitos em que deixa esquecidos os seus lances mais estúpidos.

A vida não é masoquista, dá-se mal com certas expectativas, alturas há em que quer-se a correr desabridamente, em total desprezo pelos excessos de velocidade, pelos minutos, pelas horas em que será penalizada.

O suplício da endoscopia, a espera do seu resultado, com certeza constituem um desses momentos de desenfreada aceleração. A vida quer o Céu, recusa o Inferno, mas não se vai dando mal na Terra, toda material. Tais as ideias que lhe ocorrem, ainda por força da maldita endoscopia. Deitada de lado na maca da clínica, a vida, percebendo que não é senhora de si mesmo, tudo promete: comer e beber moderadamente, caminhar todos os dias, olhar para um lado e para o outro ao atravessar as ruas. A vida é tenaz, combativa, orgulhosa e – aqui entre nós – um pouco vaidosa também.

 

(participação no desafio da Célia - "Vida" - no seu blog Raios de Sol - raiosechuvas.blogs.sapo.pt)

 

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